segunda-feira, 22 de junho de 2009

CELESTE

Augusto Alberto


Faz hoje, 22 de Junho, 79 anos, a história mais sublime do desporto da cidade, que quero aqui recuperar, depois de a ter contado em Dezembro de 1997, no extinto “A linha do Oeste”. Algumas alterações são exigidas, porque o tempo de hoje, não é o tempo de 1997, ainda muito povoado pela tragédia da Rua da República. Para que se conheça e se reflicta sobre a importância das coisas e do melhor da minha cidade.
É incontornável que a história da primeira metade do século XX não pode negligenciar o contributo soberano dos clubes da cidade. Neste particular, a história dos primeiros 50 anos da Associação Naval 1º de Maio possui um encanto muito particular. Cidade e clubes entrelaçam-se.
Desse período fica como momento mais sublime, o dia 22 de Junho de 1930. Estava uma manhã calma, de calor sanjoanino e dos “5 irmãos” partiram à mesma voz os dois shell 4 com timoneiro, da Naval e do Ginásio. Em disputa estava o Campeonato Regional de fundo. A luta saiu dura. O normal. Era a honra dos dois eternos rivais que se jogava então.
A velha ponte, lugar mítico das últimas acelerações, imutável, viu os dois conjuntos confluir para o mesmo pegão. Conheciam bem as correntes os dois timoneiros, experientes e timoratos. Entraram forte, até que o inevitável acontece, sobretudo quando se joga bem alto a bandeira.
O sol e o esforço fizeram esgotar as energias. Bátegas de água e suor molhavam os corpos. As mãos a tangerem subtilmente os remos. Nunca se apertam!
Os remos movem-se sincopadamente. O timoneiro dá mais um puxão nos baldrocos, uma guinada de leme. O aperto foi de mais. E zás! A proa do Celeste entra completamente por debaixo do barco do Ginásio. O leme, lâmina fina do barco ginasista corta e rebenta a tela da caixa-de-ar do Celeste. Chocam! Os barcos perdem velocidade e param. Os nervos rebentam frágeis e ainda hoje não se sabe, nem ninguém nunca saberá, os motivos, António Cachola alivia os pés do seu pau-de-voga, salta do seu lugar e entra na água cristalina do Mondego. O grande Edmundo salta também, mas submerso sente um remo debaixo dos seus pés e pula de novo à superfície. Finca as mãos na borda do barco e aí permanece. Cachola não sabe nadar. Os outros três também não. Só o timoneiro sabe dominar as marés. O tempo corre. Os presentes, toda a multidão que sob o tabuleiro da velha ponte saudava a regata, dão-se conta do pior. Saltam à água dois homens destemidos. Salta à água um adversário ginasista. Mas Cachola afunda-se. A Cidade agita-se e logo chora.
Vinte e quatro horas após, o corpo aparece frio, junto à velha ponte, mãos fincadas no pilar, que a tudo assiste.
Não é minha intenção ao cabo de 79 anos ajustar a história. Aliás, não há ajuste possível. Foi, sê-lo-á por todo o sempre, comum, os encontros, o entrelaçar dos remos. Só que agora os barcos são de matéria dura e não é assim do pé para a mão que rebenta uma caixa-de-ar. Para além de que saber nadar, é uma regra certa.
As exéquias de Cachola foram monumentais. Toda a cidade se juntou no infortúnio. A imprensa nacional registou o momento. António Cachola ficou como símbolo do clube. Todos os anos os velhos navalistas se deslocam ao seu mausoléu.
Mas, e o Celeste? O barco?
Não acredito no destino. Acredito no potencial dos homens e instituições. Na vontade e inteligência. O resto são misticismos de gente que mendiga, rasteja e é incapaz. A sorte e o azar são coisas do jogo da vida.

2 comentários:

Olímpio disse...

Caro amigo.Bolas o seu texto retirou-me a respiração e que sentido de amor á vida e á coragem dos homens que escrevem história na vida e nos clubes.Curvo-me e que o Senhor o tenha em sua paz.Nasci 8 anos depois,no Casal Novo do Rio,Montemor

Augusto Alberto disse...

- Fez bem o meu amigo Xano dar nota unicamente ao corpo central da história. O texto inicial era um pouco mais extenso.Para melhor comprensão, quero aqui deixar, quase como adenda, mais algumas notas.
- Neste dia 22 de Junho de 1930, quase à mesma hora, estava a minha mãe a empurrar para fora o seu primeiro filho, o meu irmão mais velho, que ironicamente veio ocupar demograficamente o lugar vago deixado por António Cachola.
- Celeste, nome da mulher mais bela, a musa, do mecenas da época.Construido em Itália/Livorno, e com estreia trágica.
- Onde pára o Celeste? Pereceu, sempre de modo trágico, nos escombros da derrocada do telhado do velho posto naútico da Av. Saraiva de Carvalho.Infelizmente, e apesar dos muitos esforços que fiz, não o consegui por a salvo, no único lugar onde deveria respousar, o museu Municipal. Carrego essa tristeza.
- Esta história foi recolhida oralmente do meu Pai e do grande Edmundo, de quem os Ingleses um dia disseram ser o remador mais valente que algum dia disputou a belissima Taça da Vitória, do conjunto das regatas internacionais, realizadas nesta minha Cidade, na primeira metade do século passado.
- Por último, aproveito para responder a uma pergunta insidiosa,feita aqui neste "aldeia olimpica",por um anónimo, sempre um anónimo, o que faço ainda no remo? REMO, sempre REMO, no centro do que de melhor e mais belo se fez nesta minha Cidade e a minha grande paixão.