sábado, 22 de maio de 2010

Elegia a um beijo

Ao meu pai


Reencontro-te agora
na tua ausência
nesta claridade de círios
que envolve a tua fronte de distância
nos sentimentos de confusos gestos
que em mim jaziam

Vejo-te renascer na luz dos ecos
que regressam em estilhaços da infância
e em cada lampejo
a tua face revive
dos impossíveis sonhos que me davas com o olhar puro.

Estou contigo
e ainda não sei quando morreste…

no rasto do tempo
só nossas carícias resistiram ao futuro
e afirmam as suas presenças
na solidão em que ficaram nossos pensamentos

Pressinto-as nas tuas mãos cruzadas
despidas das sombras
que enlutavam os teus sonhos
de criar raízes nesta terra
e que só a morte tornou real

Pressinto-as ainda
contra os meus lábios – a canção interrompida
contra os meus rumos – os caminhos não trilhados
no limiar da minha procura sem esperança.

E é sob este alento de lembranças
que deponho neste último beijo
o renascimento do que criaste
(mas que não quiseste partilhar)
minha ilegítima revolta
que resgata a tua fronte
e é o meu bastão de honra.

Arnaldo Santos, em Janeiro de 1966, poeta angolano

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