sábado, 19 de maio de 2012

O soco


Augusto Alberto

Anunciava-se o combate do ano. Na cidade havia murmúrios e tensões. O gigante de Ovar, herói nacional, contra o belga Pierre Charles. As galerias regurgitavam de povo, ele era magala e marinheiro, alguns proxenetas e dulcíssimas meninas. Entraram os dois boxeurs, e após as apresentações caminharam para o centro, prontos a esgrimir punhos. Soou a sineta e o combate teve início. Primeiro round e cerca de um minuto após, o belga assenta com a ponta da luva um jab na ponta do queixo de Santa Camarão, que, atordoado e com os olhos embebidos em névoa, cai no chão. Um desatino! Como é possível, um gigante completamente adormecido em tão pouco tempo? Estariam muitos ainda mal sentados na cadeira e já o espectáculo chegara ao fim. Exactamente ao fim, porque ali não havia lugar a novas cenas protagonizadas por segundos.

Isto foi em 1929 e agora em 2012, o nosso primeiro, Passos, também, no primeiro round, cansado e meio tonto de tanto rodar e azucrinar a vida aos outros, já começou a baixar a guarda e está a caminho de levar dois directos dirigidos às têmporas, escorreitos e seguidos, que o atirará, em definitivo, cambaleante e por terra. Contudo, entre esse ano e o actual, há uma diferença.
Então, o espectáculo acabou logo ali, enquanto, em breve, ele vai continuar com remanescentes e escanzeladas figuras. Mais um lastimoso embuste, bem se pode dizer. Ah povo, que não passas de um saco de boxe onde socam permanentemente incorrigíveis vilões e filhos da puta. Como foi o caso de Santa Camarão, o gigante, nascido no povo, atirado ao chão, no dizer do povo presente, até por um “filho da puta” de um belga. Foi de tal modo violento, que nem sequer houve necessidade de tocar a sineta a anunciar o fim.
Entretanto, na alvorada da ressaca e no meio da algazarra, a dulcíssima menina Dolores, ainda teve tempo de fazer estremecer o magala João, fazendo passar pela braguilha, uma dulcíssima mão. Como infelizes são os que são socados e felizes os que são acariciados. De todo o modo, o direito à carícia exige perseverança e carece de negar superstições e medos atávicos. Mas é aqui que a porca torce o rabo.

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