domingo, 5 de janeiro de 2014

EUSÉBIO


A única coisinha que tenho contra o Eusébio são os golos que marcou ao meu Sporting. Fora isso, que não é pouco, mas insuficiente para não ter por ele uma profunda admiração, deixo aqui, em jeito de homenagem um belíssimo texto do jornalista Ferreira Fernandes. E um obrigado ao Eusébio, com o respeito que se deve a um dos maiores desportistas de sempre.
Vale a pena ler:

" Há 90 minutos da História de Portugal que deveriam ser passados a video e divulgados nas escolas primárias. Na disciplina Formação de Carácter.
Aconteceu em Liverpool, a 23 de Julho de 1966, num estádio de futebol. Havia um jogo em que entravam uns desconhecidos, reputados de toscos mas muito rápidos, que vinham de um lugar que fazia sorrir em matéria de mérito futebolístico - a equipa da Coreia do Norte. Do outro lado, estávamos nós, a selecção portuguesa. Naturalmente descontraídos, como costumamos estar nos momentos que se anunciam fáceis. "Está no papo" é expressão portuguesa muito mais exclusivamente portuguesa do que a palavra saudade.
Tal como os norte-coreanos, era a primeira vez que nos víamos por aqueles cumes, jogavam-se os quartos-de-final do Campeonato do mundo. Mas Portugal tinha todas as razões de estar impante, arrastávamos um manto de glória clubística (nos últimos cinco anos, o Benfica ganhara duas Taças dos Campeões e o Sporting uma Taça das Taças), a própria selecção já não perdia há dois anos e, quatro dias antes, naquele mesmo estádio, tinha humilhado o bicampeão do Mundo, Brasil, por 3-1. e, depois, o adversário eram aqueles pequenitos asiáticos...
Aos 23 minutos perdíamos por 3-0. E a soberba que nos subira à cabeça foi substituída pelas duas mãos. Todos os jogadores portugueses encostavam o queixo ao peito, levavam as mãos à cabeça e olhavam perdidamente a relva. Ou, pelo menos, parecia que eram todos. Aqui, o professor deverá parar o vídeo, olhar para a classe, certamente de olhos marejados também, e deixar a frase insidiosa: "Está tudo perdido, não está?"  Os alunos, se forem bons portugueses, encolherão os ombros. Os mais combativos apontarão o erro da presunção inicial, mas todos concordarão que, agora, não havia nada a fazer.
Com um sorriso matreiro, o professor de formação de Carácter pode repor o vídeo em andamento. Reparem, reparem: na melancolia da equipa portuguesa há um gesto de rebeldia. Passaram molemente a bola ao nº 9 e este correu para a esquerda. Encostou a bola à linha lateral, o que quer dizer das duas umas:ou os coreanos o deixavam passar ou atiravam a bola para fora. Perceberam a intenção? O nº 9 estava a pôr todo o jogo português em cima dos seus ombros.
O nº 9 era o Eusébio. Já todos o sabíamos muito bom, não lhe emprestávamos ainda era tanta gana. E, reparem, reparem, ele é mesmo muito bom, nem atirar a bola fora os coreanos conseguiam, o Eusébio avança, já se permite obliquar para  a baliza, ninguém o agarra e faz golo!
Reparem, agora, nos braços erguidos de Torres, o gigante, e do calmo Coluna e de todos - um assombro de alegria. De todos? Não. Eusébio não estava para festas porque a obra estava pelos caboucos. Foi ao fundo da baliza, meteu a bola como um melão debaixo do braço e correu para o centro. De passagem, ainda deu uma cotovelada no Simões que acorria ao abraço. Abraço? Não era tempo disso.
Os coreanos puseram a bola em jogo, a pantera saltou-lhes em cima, agarrou-a e repetiu a manobra, encostar-se à linha: ou ela é minha ou não é de ninguém. Continuou ele. E fez golo. Os nossos saltaram, correram para o herói, agora já não lhes podia fazer a desfeita da festa. Qual o quê? Eusébio foi às malhas onde dormia a bola refastelada, chamou-a ao trabalho, voltou a metê-la debaixo de braço e ala para o centro do terreno. Saem-lhe ao caminho os colegas, querem abraçá~lo, ele pára um brevíssimo momento, mas at+e o Morais que arrumara dias antes o Pelé, hesitou quando viu o sobrolho carregado de Eusébio... Todos se afastam, prescindem da alegria porque o chefe assim mandou.
Os coreanos, esses, estavam parvos, não sabiam se das fintas do negro endoidado se dos costumes esquisitos das lusas celebrações.
Jogo recomeçado. E Eusébio continuou: 3-3. o que ainda não teve direito a festejos. E 4-3. Aí já sorriu, mas só isso. Aos 5-3, enfim, permitiu-se mostrar-se contente, como Miguel Ângelo, batendo no mármore do joelho de Moisés: "Fala!" A satisfação do artista perante a obra feita.
O professor de "Formação de Carácter" pode desligar o vídeo, dar um tempo aos garotos para esconder as lágrimas, e abrir a luz. Perceberam?, deverá ele dizer. Haverá alguém a engasgar-se de emoção: "O Eusébio, que grande, grande jogador!" Ao que o professor deverá dizer: não é isso, aqui não é aula de Educação Física, e de qualquer modo isso não nos interessa, nunca vocês jogarão como o Eusébio, nunca vocês verão um jogador como o Eusébio, lamento, vocês nasceram tarde.
Os garotos vão ficar meio sem jeito. E o professor deve continuar: eu mostrei este vídeo para vocês aprenderem, não futebol, porque o Eusébio não se ensina, nasce com a pessoa genial. Mostrei-vos foi o que nos falta, à maioria dos portugueses, e este vídeo ensina, como eu não conheço nada português que ensine tanto: resistência. Resistência à euforia infundada, ao entrar no campo; resistência à resignação, aos 0-3; resistência ao "porreirismo nacional", no 1-3, no 2-3, no 3-3 e até no 4-3. Enfim, aquele jogo, meus rapazes, foi uma lição de carácter.
Eusébio da Silva Ferreira nasceu em Lourenço Marques, capital de Moçambique, em 25 de Janeiro de 1942. Quase 60 anos depois, já ouvi kosovares entre paredes chamuscadas fazerem a relação tradicional: "Portugal? Eusébio!". relevância que de certa maneira Portugal reconhece ao mandar construir o maior estádio nacional ao lado de onde estava uma estátua de Eusébio. O facto de o estádio ter sido construído muitos anos antes de Eusébio ser conhecido só significa que, por vezes, somos premonitórios - sabendo que um dia teríamos ali uma estátua de Eusébio, ali se fez o Estádio da Luz.
Para a pequena história, há quem diga que poderia ser o estádio de Alvalade a vizinhar a estátua. Afinal, o garoto de 17 anos veio, em 1961, para Lisboa, com a promessa da mãe que seria para o Sporting. Teve de ser raptado para ir para o Benfica. esse rapto foi o crime de que mais de orgulha o Benfica. E, afinal, nós todos, porque Eusébio merecia o melhor dos pedestais, a melhor das equipas nacionais de então, para poder dar os concertos que deu.
Ganhou sete Bolas de Prata, como o melhor marcador do Campeonato Nacional. foi duas vezes Bota de Ouro (o melhor marcador europeu), uma vez o Bola de ouro (o melhor jogador europeu)) e duas vezes bola de Prata (o segundo melhor jogador europeu), mas isso valem o que valem os prémios de especialistas.

Nada pode ser maior condecoração de que o silêncio que se fazia em todos os estádios do mundo quando Eusébio se preparava para cobrar um  livre a menos de 40 metros do guarda-redes. conta-se que no já falado Brasil-Portugal, do Mundial de 1966, a equipa canarinha demorou a entrar. Procuravam Manga, o guarda-redes, um armário com cara de guarda-costas de chefão de droga, mas uma alma Cândida e dotes de adivinho. Manga estava no WC, tremendo, sabendo o que o esperava. Eusébio meteu-lhe dois golos, sendo um com os dois pés no ar, que pôs no ar a multidão do estádio. Mas esses não eram anunciados, e por isso não tinham a carga de execução pública dos tais livres.
Eusébio começava a marcar os livres com as mãos. ficava a três metros da bola, pés a testar a relva em ligeiro trote. Mas era para as mãos que todos olhavam. Abanavam como se quisesse ouvir duas possíveis pulseiras de missangas. Abanavam enquanto o torso se ia inclinando. Partia, rapidíssimo -  compararam-no a pantera - e chutava como ninguém. Não digo melhor que ninguém, nem pior - simplesmente como ninguém. Há milhares de fotos a prová-lo: fazia uma vénia perfeita, como um samurai, só que a perna direita, hirtíssima, quase se juntava à cabeça. A todos só lhes restava a admiração - e ao guarda-redes adversário, ir ao fundo da baliza.


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