O Zé Diogo foi meu companheiro de turma e também de carteira, na escola secundária onde ambos estudámos. Era um rapaz de longas e ágeis pernas. Um pernalta! Decidiu-se pela experiência do atletismo e durante vários anos foi campeão nacional de corta – mato escolar no âmbito da Mocidade Portuguesa. Aquela coisa fascista de que aproveitávamos os meios, diga-se com toda a verdade, e que hoje continuam bem longe de existir, ainda que custe a algumas democráticas almas tal revelação, porque esta democracia faz da omissão, a sua regra, nesta como em outras matérias. Depois decidiu-se pelo Sporting e por aí foi correndo até ao mais alto grau da disciplina. Foi muitas vezes campeão e atleta internacional, numa época em que o desporto de rendimento era mais do que incipiente. Dotado de soberba resistência e apurada velocidade, tinha tudo para ser um eleito. Perdi-lhe o rasto, mas um dia consegui chegar-lhe de novo. Estávamos ambos em Moçambique. Eu em Nampula e ele em Cabo Delgado. Apressei-me a enviar-lhe uma carta e reatamos os contactos. Contou-me então que estava gordo, tinha entrado pela cerveja e estava magoado, porque no auge da sua carreira atlética, tinha sido atirado para a guerra e agora já não se julgava capaz de retomar o nível que fizeram dele um dos eleitos para suceder a esse notável Manuel de Oliveira, que nos Jogos Olímpicos de 1964 em Tóquio, só cedeu a medalha na parte final dos 3.000 metros obstáculos. O Zé Diogo estava na calha, mas a pátria, esta pátria enviou-o para a penumbra. O bicho da corrida mordia-lhe. Disse-me que um dia tinha lá na terra onde estava destacado, organizado uma corrida pelas picadas da povoação. Para ganhar aos naturais, habituados ao pé descalço e à picada, sabia que com jogo igual perderia, convence-os então a beber umas aguardentes antes do tiro de partida, porque seriam mais rápidos. A aguardente produziu o efeito que o meu amigo Zé Diogo desejava. A maior parte dos seus competidores de ocasião desistiu, como seria de esperar e o Zé com esta artimanha acabou por ganhar a corrida. Disse-me que se riu muito e safou a imagem, porque por ali era uma espécie de mito. Uma brincadeira! Mais tarde foi eleito para o triangular anual, Moçambique, África do Sul, Rodésia, para os l0.000 metros. A meio acabou exausto deitado sobre a relva junto à corda. Sentia que já não era capaz, disse-me. Voltou da guerra e ainda tentou de novo no Sporting, mas o seu tempo tinha, de modo forçado, acabado. Mais tarde, encontrei-o por acaso, numa das minhas sortidas na maratona de Lisboa. Logo nas primeiras. Não o reconheci, estava muito diferente do Zé de passada ampla e elegante e velocidade base admirável, como se requer a um fundista de topo. Eu estava mais parecido com o ar da nossa escola. Chamou-me e reapresentou-se – me. Senti uma enorme alegria. Voltamos no ano seguinte a encontrarmos – nos no mesmo lugar, em semelhante ocasião. Seguia a sua modalidade por perto e deu-me os parabéns por continuar apesar da idade madura. Mas ele, ele estava inevitavelmente triste. A pátria para ele tinha sido uma merda, confessou-me.
O Zé Diogo é para mim uma longa e persistente saudade, porque eu acredito que aquele meu amigo de carteira, numa outra pátria teria como poucos, como é normal, atingido alto grau de rendimento atlético. Teria estado com certeza nuns Jogos Olímpicos e eu estaria todo contente e provavelmente recorda-lo-ía nesta “aldeia” de outro modo. Mas a pátria, sempre a pátria…
O meu amigo Zé Maria, meu vizinho e companheiro de primária, o melhor de todos, filho de família pobre, conseguiu a custo duro nos anos 60 formar-se em engenharia. Um verdadeiro e preciso feito para aquela época. A sua mãe buscava diária e incessantemente a lata da lavagem para criar os porcos, com que sustentava os filhos e formava aquele filho dilecto. O Pai passava meses sem ver a família, porque trabalhava nas obras que construíram à época os maiores molhes e as maiores barras do País, a da Figueira por exemplo, porque aquele filho era uma “barra” e merecia o esforço. O Zé Maria apesar de pobre, era também elegante, e isso foi-lhe um benefício na hora de escolher o seu par. Viu-o pela última vez da varanda da casa onde eu vivia. Eu estava quase a ir para a tropa e o Zé Maria disse-me que ia para Angola. E foi! Um dia a guerra matou-o e eu fiquei muito triste e zangado e nunca mais perdoei a esta pátria, que ainda não encontrou modos de sublinhar os seus melhores. Fico cansado quando recordo o Zé Diogo e o Zé Maria, mas escrevo porque quero que se saiba que estas elites só nos desrespeitam e continuam a ser a mesma merda de sempre.
5 comentários:
A triste realidade da pátria que nos paríu...
Em frança , les anciens combatant são respeitados e tratados com carinho e respeito...
Aqui,é a merda que se vÊ...
desculpa , o desabafo, mas eu tenho um pai que viveu a guerra,e que tem mazelas...que o deixaram "inapto para a vida militar , e apto para a vida civil"!!!
O senhor parece ser mesmo um bom Amigo. Que bonito!
Então uma boa noite.
Alex,
Escreveste do fundo da alma e vê-se logo que tens fundo bom. De emoção.
Quanto "às Pátrias" é uma longa história de desengano.
Carrega-lhes forte e feio, como um braço, qual espada, que lhes racha a cabeça ao meio.
Abraço,
Zorze
Um excelente texto com profundidade e sentimento. No fundo, esses momentos únicos com tudo de bom e de mau que encerram merecem ser partilhados, porque fazem parte de uma história bem recente deste país, e são precisamente estes pedaços que ajudam a escrevê-la.
Saudações do Marreta.
Infelizmente essa dura realidade é o prato do dia em várias nações. Veja-se o exemplo dos Estados Unidos, em que vários soldados morrem numa guerra sem fundamento no Iraque e são privados de seguirem os seus sonhos. Menciono particularmente os EUA pois resido aqui há 5 anos e revolta-me o sistema que Bush adoptou para governar. Felizmente que uma pessoa de carácter irá assumir a presidência dentro de poucos dias.
Parabéns pelo texto.
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