Para quem viu o filme de Elia Kazan
“Há lodo no Cais”, aliás com uma excepcional interpretação de Marlon Brando, pensará que aquilo pertencerá ao passado. E é a pura verdade, uma vez que a obra, cuja acção se passa nos States, data de 1954.
Só que, em Portugal, mesmo antes do 25 de Abril, as coisas passavam-se exactamente da mesma forma. Era assim: os desfavorecidos do sistema, os deserdados da fortuna, acumulavam-se em frente do portão do porto, com a esperança de serem chamados para mais uma jornada de trabalho na estiva.
E havia um, chamemos-lhe jagunço, cão-de-fila, bulldog ou coisa que o valha, que escolhia quem iria trabalhar nesse dia. Claro que poderia haver, não sei se houve, mas o sistema estava bem montado nesse sentido e estivadores desse tempo têm-me dito que sim, chico-espertice por parte do dito jagunço para escolher este e este em detrimento daquele e daquele.
Mas as coisas evoluíram. Quer dizer, mudaram qualquer coisa para poderem continuar na mesma. Mas que houve uma evolução notória, lá isso houve.
Agora os tais deserdados não precisam de ir para a frente do portão, basta estarem em casa, que o telefone, ou telemóvel, que isto de tecnologias vai de vento em popa, há-de tocar e, pronto, hoje há trabalho. Também há um funcionário, que tem uma lista de desempregados, de homens com emprego precário, os ditos deserdados, de estudantes até, e todas as manhãs, recebendo a informação de quantos homens são precisos, lá dá início ao seu trabalho, o de chamar os homens necessários para aquele dia. E tudo isto com a complacência dos sindicatos, que tal como então…
Não sei se repararam na evolução, sobretudo social: os trabalhadores não precisam de ir para a frente do portão, ao frio ou à chuva ou ao vento, sem terem a certeza de terem trabalho nesse dia, levantando-se assim só mesmo se tiverem de ir trabalhar. O mesmo vale para o funcionário encarregado de os chamar, nomear, escolher… bem, como queiram, que isto é uma democracia.
Também não sei se isto é legal, se é constitucional, ou se estes trabalhadores contribuem para as estatísticas de diminuição de desemprego.
Ninguém saberá, mas que com esta evolução os trabalhadores dos portos nestas condições, quer dizer, com contrato diário, ou sem trabalho certo, portanto precário, são já bem muito mais de cinquenta por cento, não haverá muitas dúvidas.
Que continua a haver lodo no cais, lá isso…
Adenda 1: um especialista na matéria afirmou recentemente que Portugal dentro de 12 anos será o país mais pobre da União Europeia. Mas temos uma vantagem. A de, coerentemente com a nossa mentalidade feudal, termos também os mais prósperos banqueiros, investidores, patronato fascistóide e outros proxenetas do género da União Europeia.
Adenda 2: o primeiro-ministro José Sócrates recebeu recentemente um apoio invulgar e inusitado. O supostamente
“líder” da Oposição diz que quer acabar com o Estado. O que se pode depreender destas declarações, não pode ser senão o acabar com o restinho da função social do Estado, que os “socialistas” ainda não, possivelmente por incompetência, liquidaram.
Das duas, uma: ou os rosa-laranja andam a brincar com a nossa inteligência ou somos estúpidos que nem pneus.