Por razões alheias à nossa própria vontade não foi publicada a totalidade da crónica “Celeste”. Aqui fica a segunda parte, com as respectivas desculpas ao Augusto Alberto e aos leitores.
Augusto Alberto
Há anos, numa manhã de sábado, dirigi-me ao velho posto náutico da Avenida Saraiva de Carvalho e não consegui abrir a porta. O telhado do velho edifício ruiu sobre os barcos e o atrelado que os transporta. Os escombros entravaram a porta. Percebi o pior. Logo dei pela perda.
Não sei quantas vezes o Celeste ainda remou depois da tragédia de 1930. Se calhar poucas. Ou mais nenhuma. O que sei é que ficou completamente destroçado. Fiquei muito magoado e hoje carrego uma dúvida. Provavelmente não fiz tudo para o salvar. Quantas vezes reclamei para que dali fosse retirado? Quantas? Pressentia que aquilo haveria de suceder. Mas também é certo que nunca ninguém me ouviu. Garanto-vos que hoje, conhecendo a forma como acabou, tê-lo-ia colocado à porta do museu, único lugar onde deveria repousar.
Celeste, em honra à mulher mais bela. Construído em Itália, Livorno, teve curta vida, aquela foi a sua regata de estreia, e história complicada.
Nesse dia de desconsolo, do último folgo do Celeste e do velho posto náutico, houve um prenúncio. Um prenúncio de que haveriam de suceder coisas bem piores. Se se tem reflectido sobre os escombros da Avenida Saraiva de Carvalho, talvez se tivesse evitado a desgraça da rua da República, que foi o fogo que destruiu a notável sede da Associação Naval 1º de Maio. A perda de uma preciosidade.
Estamos sempre a tempo de parar para reflectir. O futuro será sempre aquilo que cada um de nós quiser. Para o bem e para o mal.
Mas curioso é o facto de no mesmo dia do trágico acidente e quase à mesma hora, ter estado a minha mãe a empurrar para a luz do dia o seu primeiro filho, o meu irmão mais velho, que veio ocupar demograficamente o lugar do Cachola. Pelo menos por aqui, que bom que foi.
Esta é a história sublime de uma regata de remo. Permanece obscura, mas fui a tempo de a recuperar na oralidade do meu pai, que se hoje fosse vivo teria mais de cem anos e do próprio Edmundo, de quem os ingleses um dia disseram ser o remador mais valente que alguma vez remou nas memoráveis regatas da Taça Vitória, no conjunto das regatas internacionais da Figueira da Foz, da primeira metade do século passado. Taça Vitória, com fim também trágico, devorada pelo fogo da rua da República. Que infelicidade!
Por fim, aproveito desde já para responder a uma insidiosa pergunta feita por um anónimo, aqui nesta “aldeia olímpica”. O que faço eu hoje, ainda no remo? REMO, caro anónimo, sempre REMO.
1 comentário:
Amigo, se assim o posso tratar, o problema das memória figueirense é esse mesmo, um problema de esquecimento. E, digo-lhe, que embora não pareça são estas memórias, como aquelas que aqui deixa escritas, que ainda fazem alguma coisa pela memória da cidade, sim porque a memória da cidade depende da memória dos seus habitantes, junto dos mais novos. Mesmo que aparentemente entre os mais novos sejam poucos os que se interessam por essa preservação e pelo seu conhecimento. É preferivel poucos e bons, que o contrário. Conheço, de alguma forma as catacumbas do Arquivo Municipal, conheço algumas das agruras porque passaram os milhares de papéis ali guardados, durante anos mal arquivados, mal estimados, desde a água da chuva que nele entrou num inverno desmesurado, à falta de tratamento, refiro igualmente a muito querida "Sala Figueirense" na Biblioteca Pedro Fernandes Tomás, onde mourejei e hei-de continuar um dia destes, autêntico repositório de alguma da memória dessa cidade. Local onde aprendi, lentamente, como devem ser feitas estas coisas, a amar uma terra que não é a minha, mas que vou aprendendo a conhecer como deve ser, desde o esquecido ao presente. Sei de muitas dessas memórias desaparecidas na voragem que relato. Um dia, Augusto Pinto, chamou à Figueira da Foz, "Praia da Claridade", antes isso que o nacionalista e serôdio epiteto de raínha das praias de Portugal, pois quando ele o disse ela já não o era, ficando como sinónimo de uma outra realidade que então surgia. Não basta o que se pode guardar nas bibliotecas. A história oral é hoje um dos campos importantes no mester dos historiadores. SEndo preciso guarda-la também. Lê-lo, entende-lo, é compartilhar a ideia de que esquecer não é solução para manter viva a idéia de cidade, de burgo, com gente, com histórias, com História. Peço desculpa pelo longo comentário.
Obrigado.
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