domingo, 28 de dezembro de 2008

Histórias de mineiros (VIII)

Augusto Alberto


O luar era intenso. A floresta banhada pela luz da lua e das estrelas, que penetrava por entre as folhas e ramos das árvores, tinha um ar manso e suave.
Só pela madrugada, andando em passo estugado pela estrada negra da floresta, o homem regressava à camarata colectiva, onde os seus companheiros já descansavam. Regressava da povoação vizinha onde tinha passado uns momentos no baile.
Vinha despreocupado, sem medo, que não era homem para se “acagaçar”, habituado que estava ao trabalho duro e arriscado.
Mas eis que na sua viagem, por alturas da mina, alguma coisa lhe chama a atenção. Sente que é perseguido por um carro com os faróis desligados. Não altera o ritmo do seu passo e sente que o carro se está a aproximar. A dada altura vê-o a seu lado. Dois homens no seu interior com uma silhueta do corpo negra e de chapéu com aba descaída para a esquerda, mandam-no, com ar grave, parar. Ele pára e espera pela fase seguinte.
E eis que de dentro do carro um dos homens lhe pergunta se vinha da mina? Responde que não. E nova pergunta: - e na mina como está o ambiente? Tudo bem e normal, responde.
Após esta brevíssima e seca troca de perguntas de respostas o carro acelera e desaparece logo à frente coberto pela sombra da noite. O mineiro tinha percebido.
A polícia temia a radicalização da luta e dia e noite rondava em guarda discreta a mina.
Mas talvez mais do que isso, desejasse apanhar as pontas do movimento. Desejaria matá-lo se conseguisse apanhar os seus dirigentes de uma forma discreta e individualmente, não dando motivos de revolta colectiva na defesa dos companheiros presos. Era mais seguro actuar discretamente numa primeira fase do que fechar pura e simplesmente as portas do sindicato, mesmo naquela época.
Uns escassos dias antes os mineiros tinham tomado a decisão de reivindicar melhorias salariais.
Naquela época era um acto corajoso. O fascismo não gostava e não deixava. Além do mais a grande maioria dos homens não estava familiarizada com situações deste tipo.
Tinham sido camponeses antes de serem mineiros. Só há bem pouco começaram a formar a sua consciência de explorados. E daí à manifestação colectiva, que se consubstanciou na recusa de descida à mina, passou um longo rosário de dificuldades. Foram pois gradualmente sentindo que só em plena unidade poderiam actuar.
Foi o pequeno sindicato local, com sede em Buarcos, cujos dirigentes ao contrário da maioria dos mineiros possuíam já experiência destas lutas, colhida em S. Pedro da Cova, quem chamou à discussão no seu seio os mineiros possíveis e na hora prevista, não sem dificuldades, tomou a direcção da luta.
Foi à entrada do turno das 16 horas, num dia e ano que a memória dos mineiros já não lembra com precisão, mas que dizem se situou entre 1958 e 1960.
Os homens juntaram-se à boca da mina e em perfeita sintonia disseram não à descida. Exigiram naquele lugar a presença do Director da Companhia ao mesmo tempo que deixaram apoplécticos e lívidos de medo tantos encarregados como engenheiros., pela imagem de unidade, determinação e à primeira vista espontaneidade e, porque não? novidade.
Compareceu rápido o Director, que aflito tentou impor com um ar severo a descida aos poços. Mas o não uníssono foi determinante. O homem ficou nervoso e repetiu a ordem. A situação agudizava-se nitidamente e era preciso uma saída rápida, pois o perigo da repressão poderia ser iminente. Era preciso antes de mais evitar logo no primeiro embate o contacto com a polícia como era costume em situações idênticas. O movimento nesse caso poderia morrer por ali.
Foi então que alguém do meio dos homens rudes falou e avançou uma proposta.
- Sr. Director, desceremos aos poços se nos garantir que porá a Administração ao corrente das nossas exigências e se nos der uma resposta rápida.
O homem descomprimiu-se, tomou mais à-vontade, concordou, e os homens acabaram por descer.
O simples facto de o Director ter descido ao contacto com os mineiros e de ter acedido às suas propostas, antes mesmo de ter usado a inflexibilidade e a polícia à porta, era já de si uma vitória em tal época.
Mas em todo o caso, lá no alto, nos morros vizinhos, de onde se avistava a mina, a polícia rapidamente avisada já tinha assentado acampamento, pronta a intervir em caso de violação da “ordem e da paz” então estabelecidas.
O tempo passou com os homens esperando e dispostos a continuar. Depois veio a resposta, e não se sabe bem como, era positiva. Hoje dizem-me que foi um aumento jeitoso para aquela época.
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Ironicamente, o homem que descontraidamente regressava ao seio dos seus companheiros, deambulando de madrugada pelas estradas da floresta e que tinha por luz a iluminar-lhe o caminho a lua redonda que lhe sorria amigavelmente lá do alto, ao contrário dos homens sinistros que o abeiraram, era um dos activos dirigentes sindicais empenhados na luta.

1 comentário:

Fernando Samuel disse...

Assim se tecia (tece...) o tecido novo da luta - e do futuro.

Um abraço.