por Augusto Alberto
Em 1974 viajei de comboio, via Paris, para a União Soviética. Começou aí uma experiência de que não me arrependo. Viajamos numa companhia, wasteles, de triste memória. Sem água e aquecimento tornou-se uma tortura, sobretudo a viajem de regresso, rente ao Natal. A passagem dos Pirenéus foi dolorosíssima. Os nossos emigrantes, com escassos meios, utilizavam este comboio, com carruagens como se de choças se tratasse. Escravatura, em comboio de brancos. Uma desumanidade!
Da União Soviética tenho recordações muito precisas, embora, apesar de ser um jovem e estar naquele momento na procura de uma maior informação, já pressentia que as coisas não iam bem. Este lado estava a ganhar a batalha e por lá a atrapalhação era um facto. Breznev tinha percebido, mas sobretudo Andropov, só que este viveu pouco, muito pouco para obrigar a produzir os efeitos desejados. Chegou essa figura melíflua, Gorbatchev, que a história haverá de qualificar. É só esperar.
Recordo desse período de 1974 raros momentos, como a minha única experiência ao vivo, na ópera, no grande teatro Bolchoi, a Cármen. O lago dos Cisnes e o fabuloso D. Quixote no Palácio dos congressos. Os concertos no teatro Pushkin, ali ao vivo, a 9º sinfonia, que me deixou colado à cadeira. O fabuloso espólio da galeria Tetreakov. E do ponto de vista desportivo, escasso dias antes de regressar, uma visita ao torneio do jornal Novidades de Moscovo de patinagem no gelo. O par, Irina Rodnina, Alexandre Zaitzev, campeões olímpicos multiplas vezes, em preciosas linhas curvas e saltos fugazes, bem como essa elegantíssima Mossaiewa, vindo do ballet clássico do Bolchoi, de desenhos plácidos. John Carre, um notável patinador inglês que naquela noite patinou delicadamente, deslumbrou e derreteu corações, apesar de patinar no gelo.
Em 1980, assisti pela televisão aos Jogos Olímpicos de Verão, em Moscovo. A União Soviética tudo fez nesse momento para dar andamento a pretensões de maior modernidade, mas decisões discutíveis, suicidas, atrevo-me a dizer, permitiram o apertar da tenaz. Desses Jogos, recordo na cerimónia de encerramento, aquela última lágrima a descer pela face do urso siberiano Misha. Um adeus! Um prenúncio da desgraça que por aí haveria de vir.
E num dia desses ouvi comentários do embaixador reformado, José Cutileiro, que um dia poderá explicar que técnicas se usam para desmembrar um país, como a Jugoslávia, a propósito das manobras conjuntas da marinha russa e venezuelana precisamente em águas venezuelanas, que a marinha russa de hoje está bem longe da grande marinha soviética. Sublinho, grande. Fogo-fátuo e decadente, sublinhou. Também um jornalista russo em entrevista há bem poucos dias, reafirmou que a Rússia é hoje um país de terceiro mundo. Deserdada, com vasta imoralidade, falta de auto estima, etc, etc. Tudo o que qualifica as misérias. E eu estou à vontade porque conheço o verdadeiro fracasso da equipa olímpica russa de remo. Dirigentes e atletas envolvidos sofregamente no álcool e a deitar mão da dopagem para poderem sobreviver desportivamente num mundo física e tecnicamente muito exigente. De tal modo foi a humilhação, que na hora de colocar o barco na água para iniciar a competição, foram impedidos pelas autoridades desportivas. Um autêntico fracasso desportivo e descalabro moral. Exactamente tudo aquilo de que era acusada a ex-União Soviética, onde nada disto era possível, apesar de sérios equívocos, que se continue a reafirmar.
Nunca mais voltei à Rússia, mas tenho bem noção desta hecatombe moral, ética e social. Talvez um dia eu vá por lá confirmar imagens de gente, muita dela jovem, em farrapos, que dorme nas avenidas das grandes marcas que fazem do absurdo consumo o alfa e o ómega da sociedade contemporânea, por isso, hoje, completamente zonza, tal como eu no penúltimo dia do ano de 2008, quando pelas cerca das 9.00 passeei pela baixa lisboeta, no dia em que fui à capital tratar da minha aposentação e vi muita gente a dormir enrolada em cartões, pasme-se, por baixo das arcadas do teatro Nacional D. Maria e na sala de visitas do Terreiro do Paço, local de ministérios, protegidos da chuva e do frio. E se já não bastasse, aquela baixa que eu já há muito não visitava, de modo tão sorrateiro, desde que deixei Lisboa e regressei à minha terra natal, suja, e imunda. Aquele arco da rua Augusta, negro. Um pavor, como a vida daqueles que dormem enrolados por trapos e cartões. Uma capital que me parece governada sem paixão e amor. Apetece perguntar, oh povo, oh capital, de que pátria sois?
Democratas e liberais de agora, tenham vergonha, porque já vai sendo tempo. E não me venham com merdas, porque eu não me desuno nem abjuro recordações muito precisas. A factura está a ser bem alta.
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5 comentários:
Ai que saudades, meu Deus... Que recordações tão poéticas de Moscovo de outras eras... Que bela experiência política, tão bruscamente interrompida... Que frustração de, afinal, não se ter criado o Homem Novo capaz de resistir ao apelo capitalista, imundo como o arco da Rua Augusta! Como é injusta a Humanidade!
Uma das razões pelas quais os burguesotes me metem nojo (há muitas mais, claro) é que não dão a cara. São cobardes, mesquinhos, nefastos.E, pior, sentem-se felizes por estarem escondidos no anónimato que é coisa que eu acho indigno e abjecto, e eles acham curtido.
Enfim, são gostos e não se discutem.
É tudo uma questão de inteligência...
E a pergunta - à qual não vale responder com frases feitas - é, tão somente, esta: os povos da ex-União Soviética vivem hoje pior ou melhor do que viviam antes?
Ó sr. alex, não se impertigue, esses senhores mantém o anonimato porque têm vergonha das suas ideias, mas sentem-se é muito cómodos assim, apesar de se sentirem mal. É esquisito não é? Até parece um paradoxo. Ele há desígnios insondáveis.
Fernando Samuel: em resposta à sua pergunta direi que vivem melhor, porque com mais liberdade de expressão, de organização, de mobilidade, de indignação, etc. Já Salazar dizia "dou-vos a prosperidade em troca da liberdade" e foi contra isto que se fez o 25 de Abril, apesar de todas as críticas que possamos fazer ao actual regime.
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