Esse Agostinho do nosso contentamento, vitima já aqui o disse, de uma violenta queda motivada por atropelamento a um cão, deixou o país órfão de um dos seus mais admiráveis talentos desportivos. Nenhum desportista deu razões para tantos e tão brilhantes relatos dos seus feitos. Pela mão do talento de um jornalista desportivo de “a bola”, Carlos Miranda, que descreveu de modo delicioso o mourejar pelas “Franças” de um português singular, errático, bondoso, fiel, quase escravo dos compromissos assumidos, sem escola e impreparado para vencer num mundo já na altura muito disputado, que fez de Joaquim Agostinho, um não atleta de alta competição. Esta requer a conjugação de um conjunto de valores só ao alcance dos que não hesitam. Por isso é que alguns são campeões olímpicos e a outros só o levantar da “caminha” logo pela manhã, faz dores de barriga. Não tem que saber.
Está-me na memória, as inúmeras vezes em que Agostinho deu a alta competição de barato, pela obstinada consciência solidária.
Saído da guerra em África, aventurou-se tardiamente pelas dificuldades do ciclismo. Aportou a França e logo no primeiro Tour, deixa a imagem de um colosso físico. Era então tecnicamente um podão. Numa das etapas do seu primeiro tour, em vez de correr no asfalto, cruelmente cortou por valetas de rompão, desfaçelado e em sangue, cruzou a meta com a sua bicicleta às costas. No dia seguinte lá estava para continuar. Para espanto, consegui ficar no top 10 dos eleitos. Voltou, fez pódios várias vezes, e fica para a história como o único capaz de vergar Eddy Merkx, ainda o maior ciclista de todos os tempos, mesmo no terreno em que era imperial, o contra relógio. Aqui quero recordar duas geniais etapas em que se portou como um homem bom e não como um atleta de alta competição. Numa daquelas míticas etapas de que é feito o tour, depois de ter deixado apeado Eddy Merkx, os minutos já eram muitos a seu favor, resolveu apaixonadamente esperar pelo campeão. Miranda perguntou-lhe no final da etapa, o que é que lhe tinha dado para assim entregar a etapa e provavelmente a vitória no Tour. Disse-lhe:- um campeão merece respeito. De outra feita, o fabuloso Gimondi, o grande campeão Italiano, desesperava por alimento, dali já não era capaz de ir. Esgotado Gimondi, Agostinho seu companheiro de fuga, sempre solidário, passou-lhe o seu alimento e deixou o italiano continuar e Agostinho como é bom de ver, ficou-se. Um colosso! Era assim e não admitia réplicas.
Multiplas vezes enganado e roubado, raro reagiu violentamente, e era homem para deitar abaixo qualquer um. Foi roubado na última etapa de uma volta à Suiça que comandava, porque lhe deram a informação, premeditadamente errada, relativamente ao tempo da fuga que corria, e que deixou Agostinho sossegado no meio do pelotão convencido do controle das operações. No final da etapa, um suiço acabou por amealhar o mísero segundo que lhe permitiu ganhar na sua terra. Fora enganado, mas nem por isso se exasperou. Também enganado numa volta à Espanha que comandava, exactamente com uso da mesma estratégia, que permitiu a um espanhol ganhar em suas estradas. Foi lugar-tenente ou o segundo, de gente sem arcaboiço para resistir às agruras de voltas medonhas como são o Tour, a Vuelta ou o Giro, como no ano em que foi segundo de “Perico”, Pedro Delgado e lhe foi fiel até ao dia em que este desistiu por exaustão física. Ficou Agostinho, mas já tarde para galgar minutos. Miranda perguntou-lhe porque não atacava e Agostinho respondeu-lhe: - pagam-me para fazer o trabalho de “o” levar e eu respeito em absoluto esse compromisso. E quando foi ele o chefe de fila, ironicamente, nunca teve equipa para o ajudar. Era ele sempre quem dava a cara e o corpo, porque dos outros não reza a história.
Fica-me desse tempo a admirável vitória no troféu Baracci, troféu com nome de um italiano comendador, homem rico e apaixonado por bicicletas. O troféu tinha uma única etapa num contra-relógio a dois, de 120 km e Agostinho fez dupla com um belga, rolador excepcional, de seu nome, Van Springel. Contou que quando Agostinho amochava a cabeça no guiador não havia meio de o fazer acalmar para que ele, Van Springel, fizesse o seu natural trabalho de divisão do esforço. Gritava-lhe, mas Agostinho não tinha ouvidos, só tinha pernas. No final Agostinho disse que não estava para mariquices. Foi uma retumbante vitória.
O drama de Agostinho teve o país suspenso mais de um mês. Era um homem bom, o português ingénuo. Só a espaços se chateava e nesses momentos a coisa ficava preta. Deu de nós a melhor imagem colectiva de Povo, de mourejadores, sofredores, capaz de aguentar quase até à exaustão, canalhas, trapaceiros, bufarinheiros e corruptos e incapaz de dar umas guinadas e rebelar-se. Não deveremos esquecer Agostinho, tivesse cultivado a tempo a alta competição, teríamos nele o maior desportista de sempre e por muitos séculos. Esperemos também que como Povo, saibamos ser em toda a plenitude, porque já vai sendo tempo.
Está-me na memória, as inúmeras vezes em que Agostinho deu a alta competição de barato, pela obstinada consciência solidária.
Saído da guerra em África, aventurou-se tardiamente pelas dificuldades do ciclismo. Aportou a França e logo no primeiro Tour, deixa a imagem de um colosso físico. Era então tecnicamente um podão. Numa das etapas do seu primeiro tour, em vez de correr no asfalto, cruelmente cortou por valetas de rompão, desfaçelado e em sangue, cruzou a meta com a sua bicicleta às costas. No dia seguinte lá estava para continuar. Para espanto, consegui ficar no top 10 dos eleitos. Voltou, fez pódios várias vezes, e fica para a história como o único capaz de vergar Eddy Merkx, ainda o maior ciclista de todos os tempos, mesmo no terreno em que era imperial, o contra relógio. Aqui quero recordar duas geniais etapas em que se portou como um homem bom e não como um atleta de alta competição. Numa daquelas míticas etapas de que é feito o tour, depois de ter deixado apeado Eddy Merkx, os minutos já eram muitos a seu favor, resolveu apaixonadamente esperar pelo campeão. Miranda perguntou-lhe no final da etapa, o que é que lhe tinha dado para assim entregar a etapa e provavelmente a vitória no Tour. Disse-lhe:- um campeão merece respeito. De outra feita, o fabuloso Gimondi, o grande campeão Italiano, desesperava por alimento, dali já não era capaz de ir. Esgotado Gimondi, Agostinho seu companheiro de fuga, sempre solidário, passou-lhe o seu alimento e deixou o italiano continuar e Agostinho como é bom de ver, ficou-se. Um colosso! Era assim e não admitia réplicas.
Multiplas vezes enganado e roubado, raro reagiu violentamente, e era homem para deitar abaixo qualquer um. Foi roubado na última etapa de uma volta à Suiça que comandava, porque lhe deram a informação, premeditadamente errada, relativamente ao tempo da fuga que corria, e que deixou Agostinho sossegado no meio do pelotão convencido do controle das operações. No final da etapa, um suiço acabou por amealhar o mísero segundo que lhe permitiu ganhar na sua terra. Fora enganado, mas nem por isso se exasperou. Também enganado numa volta à Espanha que comandava, exactamente com uso da mesma estratégia, que permitiu a um espanhol ganhar em suas estradas. Foi lugar-tenente ou o segundo, de gente sem arcaboiço para resistir às agruras de voltas medonhas como são o Tour, a Vuelta ou o Giro, como no ano em que foi segundo de “Perico”, Pedro Delgado e lhe foi fiel até ao dia em que este desistiu por exaustão física. Ficou Agostinho, mas já tarde para galgar minutos. Miranda perguntou-lhe porque não atacava e Agostinho respondeu-lhe: - pagam-me para fazer o trabalho de “o” levar e eu respeito em absoluto esse compromisso. E quando foi ele o chefe de fila, ironicamente, nunca teve equipa para o ajudar. Era ele sempre quem dava a cara e o corpo, porque dos outros não reza a história.
Fica-me desse tempo a admirável vitória no troféu Baracci, troféu com nome de um italiano comendador, homem rico e apaixonado por bicicletas. O troféu tinha uma única etapa num contra-relógio a dois, de 120 km e Agostinho fez dupla com um belga, rolador excepcional, de seu nome, Van Springel. Contou que quando Agostinho amochava a cabeça no guiador não havia meio de o fazer acalmar para que ele, Van Springel, fizesse o seu natural trabalho de divisão do esforço. Gritava-lhe, mas Agostinho não tinha ouvidos, só tinha pernas. No final Agostinho disse que não estava para mariquices. Foi uma retumbante vitória.
O drama de Agostinho teve o país suspenso mais de um mês. Era um homem bom, o português ingénuo. Só a espaços se chateava e nesses momentos a coisa ficava preta. Deu de nós a melhor imagem colectiva de Povo, de mourejadores, sofredores, capaz de aguentar quase até à exaustão, canalhas, trapaceiros, bufarinheiros e corruptos e incapaz de dar umas guinadas e rebelar-se. Não deveremos esquecer Agostinho, tivesse cultivado a tempo a alta competição, teríamos nele o maior desportista de sempre e por muitos séculos. Esperemos também que como Povo, saibamos ser em toda a plenitude, porque já vai sendo tempo.
5 comentários:
Espantoso Agostinho!
(Já vai sendo tempo, já...)
Um abraço.
Devias ter seguido jornalismo. Mas isso já todos os que te conhecem sabem. E até o jornalismo está pela hora da morte, com algumas excepções como é da praxe. E este texto está supimpa como dirim nossos irmãos da América do Sul. A excelência de um texto na excelência de um atleta e de um homem que teve o enorme azar em ter nascido em Portugal.
Um texto à altura do enorme Agostinho.
Abraço
Merecida homenagem, sem dúvida!
Que falta fazem ao desporto homens e atletas como o Agostinho...
Atenção porque a crónica sobre "esse Agostinho do nosso contentamento" , não é só uma homenagem a alguém que me deliciou na juventude, mas também um claro grito no sentido de nos afirmarmos como Povo, porque já vai sendo tempo."
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