(…) Quando cai no Tarrafal, continuei a fazer poesia, duma maneira geral sem a preocupação da rima, da métrica - da métrica deliberada. Simplesmente, caio na cela disciplinar e estou num dos momentos mais duros, mais tremendos da minha vida, em que fiquei um ano sem recreio, sem direito a correio – nem sequer esse cordão umbilical: as cartas da família, dos amigos e das amigas - , dormi no chão períodos enormes – três horas já era noite lá dentro, sem livros – e era uma espécie de jazigo…
Era como se isto fosse uma cela e, dentro dela, havia quatro ou cinco jazigos até lá ao fundo. Depois a gente entrava, tinha um corredor e depois ainda entrava para outro sítio. E ali, como natureza, tinha baratas, mosquitos, aranhas, pardais que faziam ninhos lá em cima… E eu vi que, se não arranjasse uma capacidade de resposta, eu enlouquecia. Bem, entro já debilitado – nessa altura tinha já dez anos de campo de concentração… (…)
Então, autenticamente como quem faz palavras cruzadas, comecei… tinha problemas em conseguir papel e lápis. Havia na cela ao lado uns camaradas do PAIGC, com quem eu, clandestinamente, consegui entrar em contacto – a janela era relativamente longe, mas eu, com um pau de vassoura, conseguia estender o meu saco, na ponta. Eles depois punham lá coisas que eu escondia, podia ler, escrever. E em períodos em que, aligeirada a situação, e em que já podia ter um ou outro livro, caderno – eram da caserna onde os outros viviam -, para queimar o tempo eu compliquei o jogo tentando fazer a minha poesia – toda a que entendesse – e passou a ser um jogo, autenticamente um jogo, sem pensar que sairia vivo de lá… Eu estava absolutamente convencido que morria lá, e que aquilo era absolutamente inútil. Mas o que eu queria era não enlouquecer. Eu tinha um raciocínio: o suicídio ocorria-me muitas vezes e, ao mesmo tempo, o desespero e uma raiva louca. Dizia: “- Eles enterram-te só, e ganham o jogo totalmente…” A minha ideia era esta: fazer um acto de violência em que conseguisse matar um, mesmo que depois fosse morto, mas pelo menos fazia um a um – isto em termos de jogo. Se matasse dois, ganhava dois a um! Veja só o meu estado… Dava comigo a acordar com a minha voz a falar alto, e passeava como um louco; quando já não me deixavam no jazigo, deixavam-me passear… Isto é, era dentro daquele espaço, mas passeando naquele corredor… e então tentei reconstituir de memória alguns sonetos, algumas quadras, umas estâncias de Os lusíadas, e estudar com o pouco que eu tinha aprendido de versificação – 4ª e 8ª, 3ª, 5ª etc., cinco sílabas, dez sílabas… E, inclusivamente, até procurava as rimas mais arrevesadas para andar ali com os cornos um dia inteiro, entretido, à procura até acabar o soneto. E isto foi um recurso em que, posso dizer, taxativamente, a poesia me salvou. Se quiser, chame-lhe palavras paralelas, hieróglifos: para mesmo matar o tempo e não enlouquecer…
Mas tive outros recursos, domesticar pardais, domestiquei uma aranha, uma sardanisca, dessas osgas que comem mosquitos – o que para mim era um inferno -, e ela andava no meu bolso, no meu ombro… Os pardais – que são cruéis entre eles – os ninhos não lhes chegavam, tiravam os ovos. E os gajos iam crescendo, iam lá fora fazer as suas rusgas e vinham, pousavam aqui, pousavam na cama – às vezes sujavam-me o lençol, isto nos períodos em que eu já podia ter lençol… De maneira que, pronto, assim ficou… Se aquilo dá para literatura ou não dá, também não estou muito preocupado. De qualquer maneira foi assim.
Portanto, foi um salto tremendo entre a poesia clássica, obrigada a todos os ss e rr, e aquela era uma poesia absolutamente espontânea, livre, sem preocupação de ofício literário, e que há quem diga que está mais conseguida, há quem diga que há bons num lado, há bons no outro, o problema já não é meu…
Era como se isto fosse uma cela e, dentro dela, havia quatro ou cinco jazigos até lá ao fundo. Depois a gente entrava, tinha um corredor e depois ainda entrava para outro sítio. E ali, como natureza, tinha baratas, mosquitos, aranhas, pardais que faziam ninhos lá em cima… E eu vi que, se não arranjasse uma capacidade de resposta, eu enlouquecia. Bem, entro já debilitado – nessa altura tinha já dez anos de campo de concentração… (…)
Então, autenticamente como quem faz palavras cruzadas, comecei… tinha problemas em conseguir papel e lápis. Havia na cela ao lado uns camaradas do PAIGC, com quem eu, clandestinamente, consegui entrar em contacto – a janela era relativamente longe, mas eu, com um pau de vassoura, conseguia estender o meu saco, na ponta. Eles depois punham lá coisas que eu escondia, podia ler, escrever. E em períodos em que, aligeirada a situação, e em que já podia ter um ou outro livro, caderno – eram da caserna onde os outros viviam -, para queimar o tempo eu compliquei o jogo tentando fazer a minha poesia – toda a que entendesse – e passou a ser um jogo, autenticamente um jogo, sem pensar que sairia vivo de lá… Eu estava absolutamente convencido que morria lá, e que aquilo era absolutamente inútil. Mas o que eu queria era não enlouquecer. Eu tinha um raciocínio: o suicídio ocorria-me muitas vezes e, ao mesmo tempo, o desespero e uma raiva louca. Dizia: “- Eles enterram-te só, e ganham o jogo totalmente…” A minha ideia era esta: fazer um acto de violência em que conseguisse matar um, mesmo que depois fosse morto, mas pelo menos fazia um a um – isto em termos de jogo. Se matasse dois, ganhava dois a um! Veja só o meu estado… Dava comigo a acordar com a minha voz a falar alto, e passeava como um louco; quando já não me deixavam no jazigo, deixavam-me passear… Isto é, era dentro daquele espaço, mas passeando naquele corredor… e então tentei reconstituir de memória alguns sonetos, algumas quadras, umas estâncias de Os lusíadas, e estudar com o pouco que eu tinha aprendido de versificação – 4ª e 8ª, 3ª, 5ª etc., cinco sílabas, dez sílabas… E, inclusivamente, até procurava as rimas mais arrevesadas para andar ali com os cornos um dia inteiro, entretido, à procura até acabar o soneto. E isto foi um recurso em que, posso dizer, taxativamente, a poesia me salvou. Se quiser, chame-lhe palavras paralelas, hieróglifos: para mesmo matar o tempo e não enlouquecer…
Mas tive outros recursos, domesticar pardais, domestiquei uma aranha, uma sardanisca, dessas osgas que comem mosquitos – o que para mim era um inferno -, e ela andava no meu bolso, no meu ombro… Os pardais – que são cruéis entre eles – os ninhos não lhes chegavam, tiravam os ovos. E os gajos iam crescendo, iam lá fora fazer as suas rusgas e vinham, pousavam aqui, pousavam na cama – às vezes sujavam-me o lençol, isto nos períodos em que eu já podia ter lençol… De maneira que, pronto, assim ficou… Se aquilo dá para literatura ou não dá, também não estou muito preocupado. De qualquer maneira foi assim.
Portanto, foi um salto tremendo entre a poesia clássica, obrigada a todos os ss e rr, e aquela era uma poesia absolutamente espontânea, livre, sem preocupação de ofício literário, e que há quem diga que está mais conseguida, há quem diga que há bons num lado, há bons no outro, o problema já não é meu…
António Cardoso a Michel Laban, in "Angola - Encontro com escritores", vol I)
N. R. - O poeta António Cardoso foi preso em 1959 e depois em 1961. Nesta segunda prisão esteve cerca de três anos em cadeias em Luanda após o que foi transferido para o Campo de Concentração do Tarrafal, de onde foi libertado em 1 de Maio de 1974.
No extracto da entrevista que reproduzimos, o poeta, ou por decoro ou porque não veio ao caso pois era o escritor que estava prestar um depoimento, não diz o que é do conhecimento público e já contado por outros presos: que neste paraíso foi espancado várias vezes até à inconsciência.
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