sábado, 6 de outubro de 2012

Um manto negro sobre Portugal


Augusto Alberto

 Gaspar não parece ter remorsos, pelos estragos causados, no afã de conseguir um numerário. Foi o que mostrou quando falou à nação. Gaspar e Passos andam por lugares trocados, longe dos meus e, por isso, não podem vir a saber da história que aqui vou contar.
Gaspar falou e um pouco depois, um cidadão, que eu vou tratar por António, entrou numa grande superfície da minha aldeia e esperou por alguém que lhe parecesse poder vir em seu socorro. Invento aqui, também, um nome para uma mulher real. Maria! António abordou Maria. António disse a Maria: “minha senhora, tenho muita fome, ajude-me”. Maria rodou, olhou António e ficou atónita. António renovou o seu pedido: “Tenho fome!” Maria cuidou-se e disse a António para a seguir. António seguiu-a e parou, porque Maria mandou. António esperou. Maria entrou na grande superfície a retalho. Maria encheu um saco com pão. Maria juntou 4 latas de atum. Juntou ainda uma lata de salsichas. Passou pela caixa. Contou a história à menina da máquina registadora. Maria pagou. Maria saiu e chamou António. António recebeu o quinhão de Maria. Maria chorou. António agradeceu, porque Maria lhe adiou a morte antes do tempo certo.
Não sei se António, nome inventado que dá corpo a uma história verdadeira, alguma vez viveu acima das suas possibilidades. Se viveu, deu um rotundo trambolhão, e sente a pior das lições. Que se pode ir directo à condição de faminto, equação complexa, sem dúvida, sem ter passado pela proletarização.
Também não sei se António, por ventura, acreditou em algum momento, nos contos de cavalheiros de colarinho branco, que o levaram a ser, um, entre os milhões inamovíveis, que pelo voto, alimentaram a alimária do bloco central, que lhe cantou patranhas social-democratas, liberais ou neo-liberais, de um mundo novo, repleto do supérfluo, que é a marca de ferro deste capitalismo fraudulento, canibal e terrorista. Nem sei se um dia António, disse: “não voto, vou para a praia”.
O que eu sei é que António vagueia pelas entradas das grandes superfícies, à procura de quem lhe adie a morte. Talvez um dia, de tão farto e sem esperança, acabe num mergulho, atirado do alto da ponte que liga as duas margens do rio da minha aldeia. Então este rio ficará também a saber que por causa de uns tipos que só conseguem ver o mundo segundo modelos matemáticos, que negam a vida, António resolveu rebentar com as entranhas na água que corre direita ao mar. E o rio da minha aldeia, mais uma vez, tingir-se-á de sangue. E o sangue mais uma vez, ficará encurralado num baixio, tal como em baixio está encurralado António.
O rio que banha a minha aldeia, não é cruel e reaccionário. Há um lugar, inclusive, onde é tido por Bazófias. Cruéis e reaccionárias são as universidades que ensinam estes modelos matemáticos, que, quando postos a caminho, acabam por trazer a morte antes do tempo certo. Na verdade, a elite lançou mais uma vez, um manto negro sobre Portugal.

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