terça-feira, 22 de abril de 2008

E sempre que Abril aqui passar... (V)

Carta para Carino, ou a história triste de uma criança loira que cresce entre as latas e a lama. Aqui, ao pé de nós.


(José Martins, jornal Barca Nova, 17 de Fevereiro de 1978)




Carino
Devo-te uma explicação e estou aqui para ta dar. Sou aquele tipo da máquina fotográfica que aí foi duas vezes para te ver e fotografar, e que da primeira vez enfiou pés e sapatos pelo lamaçal adentro. Lembras-te, não lembras? Com a tua idade, Carino, podes ficar seguro de que eu teria rido a bom rir se visse alguém atolar-se como a mim aconteceu nessa manhã de sábado. Mas tu não riste. Antes me fixaste com o teu olhar a um tempo doce e circunspecto, comentando sereno e a propósito: “Tás sujo”. Eu estava realmente sujo, Carino. E mais sujo do que tu pensas. É que na ânsia de revelar as chagas da minha cidade, com uma intenção, aliás, que supus louvável, esqueci-me de que estava a devassar a tua própria intimidade, a fazer fogo contigo, a mostrar aos outros, sem tua licença, o que necessariamente ainda escapa à tua inocente concepção da vida. Sujei-me, Carino, e disso venho penitenciar-me. Perante ti, os teus irmãos, os teus pais, os amigos que contigo coabitam nessa enxovia sem nome.
Querido amigo:
Acredita que guardarei para sempre o porte exemplarmente digno da atitude que tomaste. Na tua nudez superior, que com indiferença total enfrenta a inclemência da intempérie, o frio, a chuva, a ventania agreste, reside uma força que é simultaneamente um exemplo vivo de resistência, já não digo ao fascismo, que não seria correcto, mas a esta forma de vida que continua a confundir prioridades, a iludir situações, a percorrer caminhos que nada têm a ver contigo nem comigo. Mas eu tenho casa, Carino. Tenho conforto, agasalho, alimentação, ainda uma tranquilidade que me permite o luxo de escrever cartas quando e a quem me dá na gana. É tudo mais simples para mim. No entanto, vê tu bem, querido amigo: quem está sujo sou eu, e não tu.

É verdade que há milhares de crianças iguais a ti por esse País fora. Sei que o problema que te diz respeito não pode ser encarado isoladamente, que a solução passa por opções de fundo, a toda a dimensão da terra em que nascemos. Mas foste tu que não riste quando me atolei à entrada do antro em que vegetas, nesse mar de lama e porcaria onde chafurdas com a indiferença de um herói. Se me é permitido confessar um íntimo desejo, és tu agora que me interessas, jovem companheiro. É para a tua vida e para a dos teus irmãos, para a dos teus pais e para a dos teus amigos, para todos aí reunidos nesse bairro de lata por detrás da antiga cadeia da nossa cidade, que eu desejaria, para já, ver encontrada solução capaz. Sem esquecer as opções de fundo, que nelas continuaremos todos esperançadamente interessados.
Arrisco dizer-te, Carino, que a nossa Câmara tem nas suas mãos livrar-te da imundície e da pocilga. Acredita: eu nem sequer me lembraria dela se não fora o caso de ter sempre presente que se trata de uma Câmara de maioria socialista. Mas tenho. Reconheço por isso que não é uma Câmara qualquer, que é uma Câmara com responsabilidades, e sobretudo com responsabilidades perante ti. E não era difícil, Carino: tudo se resumiria, afinal, também numa opção. Numa opção entre ti e umas poltronas; ou, se preferires, entre vocês todos e o escândalo do pagamento extra de um ante-projecto. O do Mercado, sim, Carino, a Câmara sabe bem que é a ele que me refiro.
Talvez intramuros me chamem demagogo, um palavrão perante o qual encolherás teus ombros de criança. Estou-me nas tintas para o palavrão. Tal qual como tu. Mas podes acreditar: se ela quisesse ponderar o problema, e decidisse optar por ti, teria a seu lado a população laboriosa de uma cidade em peso.
Aposto, Carino. Aposto a valer.
Um beijo fraternal do

José Martins

1 comentário:

Anónimo disse...

Buuuááá...! Que fofinha esta prosa tão lamechas! Ai os pobrezinhos nossos irmãos tão desprezados Senhor!Tadinho do Carino que hoje deve ser traficante de drogas duras numa roulotte cigana!