Carta para Carino, ou a história triste de uma criança loira que cresce entre as latas e a lama. Aqui, ao pé de nós.
(José Martins, jornal Barca Nova, 17 de Fevereiro de 1978)
Carino
Devo-te uma explicação e estou aqui para ta dar. Sou aquele tipo da máquina fotográfica que aí foi duas vezes para te ver e fotografar, e que da primeira vez enfiou pés e sapatos pelo lamaçal adentro. Lembras-te, não lembras? Com a tua idade, Carino, podes ficar seguro de que eu teria rido a bom rir se visse alguém atolar-se como a mim aconteceu nessa manhã de sábado. Mas tu não riste. Antes me fixaste com o teu olhar a um tempo doce e circunspecto, comentando sereno e a propósito: “Tás sujo”. Eu estava realmente sujo, Carino. E mais sujo do que tu pensas. É que na ânsia de revelar as chagas da minha cidade, com uma intenção, aliás, que supus louvável, esqueci-me de que estava a devassar a tua própria intimidade, a fazer fogo contigo, a mostrar aos outros, sem tua licença, o que necessariamente ainda escapa à tua inocente concepção da vida. Sujei-me, Carino, e disso venho penitenciar-me. Perante ti, os teus irmãos, os teus pais, os amigos que contigo coabitam nessa enxovia sem nome.
Querido amigo:
Acredita que guardarei para sempre o porte exemplarmente digno da atitude que tomaste. Na tua nudez superior, que com indiferença total enfrenta a inclemência da intempérie, o frio, a chuva, a ventania agreste, reside uma força que é simultaneamente um exemplo vivo de resistência, já não digo ao fascismo, que não seria correcto, mas a esta forma de vida que continua a confundir prioridades, a iludir situações, a percorrer caminhos que nada têm a ver contigo nem comigo. Mas eu tenho casa, Carino. Tenho conforto, agasalho, alimentação, ainda uma tranquilidade que me permite o luxo de escrever cartas quando e a quem me dá na gana. É tudo mais simples para mim. No entanto, vê tu bem, querido amigo: quem está sujo sou eu, e não tu.
Devo-te uma explicação e estou aqui para ta dar. Sou aquele tipo da máquina fotográfica que aí foi duas vezes para te ver e fotografar, e que da primeira vez enfiou pés e sapatos pelo lamaçal adentro. Lembras-te, não lembras? Com a tua idade, Carino, podes ficar seguro de que eu teria rido a bom rir se visse alguém atolar-se como a mim aconteceu nessa manhã de sábado. Mas tu não riste. Antes me fixaste com o teu olhar a um tempo doce e circunspecto, comentando sereno e a propósito: “Tás sujo”. Eu estava realmente sujo, Carino. E mais sujo do que tu pensas. É que na ânsia de revelar as chagas da minha cidade, com uma intenção, aliás, que supus louvável, esqueci-me de que estava a devassar a tua própria intimidade, a fazer fogo contigo, a mostrar aos outros, sem tua licença, o que necessariamente ainda escapa à tua inocente concepção da vida. Sujei-me, Carino, e disso venho penitenciar-me. Perante ti, os teus irmãos, os teus pais, os amigos que contigo coabitam nessa enxovia sem nome.
Querido amigo:
Acredita que guardarei para sempre o porte exemplarmente digno da atitude que tomaste. Na tua nudez superior, que com indiferença total enfrenta a inclemência da intempérie, o frio, a chuva, a ventania agreste, reside uma força que é simultaneamente um exemplo vivo de resistência, já não digo ao fascismo, que não seria correcto, mas a esta forma de vida que continua a confundir prioridades, a iludir situações, a percorrer caminhos que nada têm a ver contigo nem comigo. Mas eu tenho casa, Carino. Tenho conforto, agasalho, alimentação, ainda uma tranquilidade que me permite o luxo de escrever cartas quando e a quem me dá na gana. É tudo mais simples para mim. No entanto, vê tu bem, querido amigo: quem está sujo sou eu, e não tu.
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Arrisco dizer-te, Carino, que a nossa Câmara tem nas suas mãos livrar-te da imundície e da pocilga. Acredita: eu nem sequer me lembraria dela se não fora o caso de ter sempre presente que se trata de uma Câmara de maioria socialista. Mas tenho. Reconheço por isso que não é uma Câmara qualquer, que é uma Câmara com responsabilidades, e sobretudo com responsabilidades perante ti. E não era difícil, Carino: tudo se resumiria, afinal, também numa opção. Numa opção entre ti e umas poltronas; ou, se preferires, entre vocês todos e o escândalo do pagamento extra de um ante-projecto. O do Mercado, sim, Carino, a Câmara sabe bem que é a ele que me refiro.
Talvez intramuros me chamem demagogo, um palavrão perante o qual encolherás teus ombros de criança. Estou-me nas tintas para o palavrão. Tal qual como tu. Mas podes acreditar: se ela quisesse ponderar o problema, e decidisse optar por ti, teria a seu lado a população laboriosa de uma cidade em peso.
Aposto, Carino. Aposto a valer.
Um beijo fraternal do
José Martins
1 comentário:
Buuuááá...! Que fofinha esta prosa tão lamechas! Ai os pobrezinhos nossos irmãos tão desprezados Senhor!Tadinho do Carino que hoje deve ser traficante de drogas duras numa roulotte cigana!
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