O anonimato não me incomoda nem tem mal, é um direito. Incómodo, é não termos socialmente coragem.
E tendo coragem, quero aqui deixar pequenas memórias que muito me incomodaram e me obrigaram a reflectir.
Então aproveito para dizer que não fiquei indiferente ao facto de, há um bom par de anos, famílias argentinas inteiras serem postas em situação de total exaustão. Recordo aquela família, desesperada e desamparada, acampada em frente à porta do banco, onde durante anos tinha deixado à guarda economias de anos, e naquele momento estava sem as poder utilizar, porque já não existiam. Primeiro, gente sem escrúpulos garantiu que produzindo, produzindo sempre cada vez mais, um dia chegaria ao jardim do Éden. Mas chegou primeiro o inferno, e dizimou esperanças. Do mesmo modo, recordo imagens de uma povoação inteira ter aproveitado gado bovino, morto por acidente numa estrada, para sacar, em plena ordem solidária, o seu quinhão, para se saciar e fazer frente a dias de mais angústia. Mas antes que estas coisas tivessem acontecido, o grande capital financeiro, avisado, colocou o seu dinheiro a salvo e continuou, sem consequências, a ser amplamente premiado.
Como as coisas estão, não me admira que se repitam por cá. Como reagiremos, sobretudo o cidadão médio sapiens desta Europa? Como sempre, cavalgando no seu atávico oportunismo social e politico e esperando que terceiros tirem as castanhas do lume, na esperança de as poder voltar a comer.
Também não fico indiferente ao colapso completo da cidade de Nova Orleães, que a administração esqueceu só porque a pele desta cidade é um pouco mais escura do que a pele de quem bem sentado olha o mundo a partir do seu umbigo. Pelos vistos, são as razões de tamanha e dramática incúria. Mas curiosamente em Cuba, na Pátria de Fidel, a cruel ditadura castrista e terceiro mundista, por onde os mesmos ventos passam exactamente com a mesma velocidade e grandeza de destruição, não consta, numa relação de causa e efeito, que os efeitos sejam tão duros, amargos, dramáticos ou sequer iguais. De que democracias falamos?
Nem fico indiferente à morte, em completa solidão, de milhares de cidadãos de Caracas, arrastados quando as chuvas impiedosas escorreram pelas encostas e engrossaram em rios de lama. Milhares que dariam para povoar uma cidade quase como aquela em que vivemos, a Figueira da Foz. Estava a Venezuela em plena democracia de Carlos Andrés Perez, distinto membro da família socialista. Sem saber bem ainda o que é o “chavismo”, aproveito no mínimo, para exclamar; - pois é, Chavez, esta gente perdeu a memória e entrou fundo em plena amnésia.
Também não fico indiferente à tragédia do Ruanda. Por ali são pretos e nem há petróleo, e o cidadão europeu nem imagina que há ali um País assim, com gente sem eira nem beira. Como é possível a comunidade internacional, tão reactiva quando dá jeito, ser ali tão passiva? Contudo, não fico indiferente ao facto de uns figurões e patifes mentindo, terem esfacelado e destruído um país com algumas qualificações sociais. Neste particular, não esqueço o papel activo do 1º ministro, à época, do meu País, para minha vergonha. Que tribunal internacional julgará esta gente? Nenhum, porque esta gente, bem colocada e à luz desta democracia lamacenta e em curso, mostra que a justiça só se coloca aos derrotados e desse modo, sairá democraticamente impune.
Quiseram linchar a tiro um Presidente eleito. Aí o petróleo… Não é que o prémio Nobel, Horta, me inspire alguma confiança. Mas será que os amigos se zangaram? E sendo assim, que gula é capaz de tratar a tiro a amizade? Estivemos então perante um cenário canalha? Interessante seria que a história fosse bem contada. Não lhe fico indiferente e nem sequer ao facto de o partido vencedor das eleições ficar afastado democraticamente do poder. Um bom golpe democrático. Falo exactamente de Timor.
Mas se quisermos avançar para o País onde vivemos, volto à história do parque Mayer. Como é possível que o homem que tão irresponsavelmente tem gerido dinheiros públicos, continue politicamente respirando? E quem é responsável pela derrapagem fabulosa dos custos do Centro Cultural de Belém, obra sem dúvida de bom gosto e qualidade. E como é possível não atribuir culpas a quem decidiu fazer estádios para além do razoável e que agora são sérios problemas públicos. E por último, convido a fazer um passeio pelo sublime Douro, eu dou boleia, para uma visita à monstruosa e inacabada barragem de Foz Côa, onde dinheiros públicos foram majestaticamente alagados. Que responsáveis à época e que consequências? Os técnicos da EDP, porque conhecendo o espólio rupestre não o evidenciaram como seria o seu dever, o poder politico que sabendo, tardou a decidir e só sobre pressão?
Por que razão as coisas acabam sempre assim? Mas entretanto, a mim, funcionário público, continuo a ser apertado há anos, ao que me dizem, para evitar males maiores. Males que gente desta vem em catadupa criando, sem ser responsabilizada, mas sempre saltando democraticamente de galho em galho, à cata do próximo prémio.
Nesta democracia, assente num papel que o cidadão coloca numa caixa de 4 em 4 anos e depois mandado recuar, quer queira ou não, para o limbo da intervenção e opinião, as coisas só podem correr assim. Mas que queiram que eu também enfileire nessa ressaca, nem pensar. Era o que faltava!
Como cidadão empenhado não quero ser politicamente bem comportadinho e de bela impressão, porque esse não é rótulo que quero se me cole. Não me entrego nem cedo e nem sequer dou o direito a concessões. Socialmente, e aqui é que bate o ponto meu caro leitor, porque esta é a enorme diferença, quero continuar empenhado. Em 2012 quero estar nos Jogos Paraolimpicos, de novo na companhia de gente fabulosa, e nem desejo saber se é comunista ou não. Que seja simplesmente pessoa. Pessoa fisicamente diferente, naturalmente, mas tão igual. Darei de novo o meu melhor, desde já prometo.
Se esta democracia não me serve, então atrevo-me quase a dizer, como um dia disse o comandante zapatista Marcos, da região regularmente visitada pelo garboso exército mexicano: “é preciso mudar este mundo, para, chamemos-lhes socialismo ou outra coisa, desde que seja melhor e mais justo”.
E antes que me vá, quero aqui lembrar, à época, palavras ditas: o fim da experiência socialista dar-nos-á um mundo de abundância, de leite e mel. Ao cabo de escassos 20 anos, a vida mostra que afinal nos mentiram. Então é óbvio que eu sei como isto começou e espero viver para ver como vai evoluir.
5 comentários:
Belíssimo artigo. Entrew os despojos do capitalismo, já podem ser acrescentados, por exemplo, os bairros - eu disse baurros, não casas - completos de São Francisco na Califórnia, esvaziados de moradores por falta de pagamento. Neste caso do primeiro mundo podem encontrar-se além dos operários qualificados ou não, médicos, engenheiros, advogados, programadores e toda a espécie de pessoas altamente qualificadas, lançadas para o desemprego, primeiro, logo para a indigência, sem qualquer protecção para a reforma ou para os cuidados de saúde, sem dinheiro para pagarem a educação dos filhos, sem esperança. Não que o seu sofrimento seja maior que o dos exemplos referidos no post, mas é significativo que tal se passe no país sempre apontado como o economicamente mais poderoso do mundo.
...bairros...
Que não te doam as mãos, companheiro!
Parabéns.
Mais um excelente texto de Augusto Alberto.
Um abraço.
Texto bem redigido, como é apanágio do seu autor. Mas, a razão ou mote da sua elaboração com o corpo da crónica é que eu, sinceramente, não entendo.
A propósito, achei curiosa a frase citada pelo Louçã quando qualificou o crash financeiro como "a queda do muro de Berlim do capitalismo". Não sei se é tão linear mas, na essência, nada voltará a ser como dantes. Tal como quando colpsou o império soviético e a cortina de ferro da Europa oriental e a liberdade política se instalou até aos Urais.
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