por Augusto Alberto (texto e fotos)
Não quero deixar, depois da minha primeira incursão pelas impressões sobre a estrutura olímpica em geral, e em período de comemoração do primeiro aniversário do “aldeia olímpica”, de fazer um breve comentário social e técnico, que são as verdadeiras razões dos jogos.
Em primeiro, quero dizer que a saudade já mora, porque os dias vividos na aldeia deram-me imagens de atletas muito diferenciados, mas todos com a mesma vontade de viver em absoluto e pleno. O gosto pelos dias colectivos marcou cada um de um modo absoluto. Todos e também os campeões paraolímpicos, mantiveram a atenção social educada, própria de gente que faz da vida um acto de sensatez, paixão e elegância. Por ali os narizes não empinaram, nem o umbigo pessoal representou o centro do mundo, ou simplesmente, o ar foi de enjoo. A modéstia acima de tudo. E isto não é pouco. Da delegação portuguesa, direi que vivi com dirigentes com currículo comprovado, de grande sensibilidade, capaz de discutir sem levantar a voz e procurando sempre solução para o problema. Recordo o grupo dos fundistas, uma boa parte deles em fim de carreira, com vastas medalhas, e por isso, um grupo de fina ironia e de bons malandros. Gente excepcional! Apaixonante o trabalho dos treinadores dos atletas da boccia. Atletas, alguns, em completa dependência do seu treinador. A paixão com que colocavam a colher, ou passavam o guardanapo na boca do seu atleta, só pode ser um sinal de gente completamente engajada e de fina sensibilidade social.
De certeza nem sequer o dinheiro contou, porque não dei nota de que à cabeça se discutisse o cheque. Ali estava um compromisso com gente com o mesmo direito, de fazer bem, ou simplesmente viver, mas infelizmente com necessidade de apoio. Gente desta, assim, só pode ser “Gente” de fina sensibilidade. A boccia representa uma parte do melhor do nosso presente e futuro. Aliás, quero aqui deixar também um pequeno registo da emoção sentida pela treinadora coordenadora da boccia, que orientando um dos atletas nacionais, num jogo em que o adversário era um atleta iraniano, é pá…, se comoveu de tal modo, que não nos deixou de identificar o momento em que o atleta iraniano, numa fase do jogo em que estava a “massacrar” o atleta Português, resolveu cometer 4 faltas seguidas, no sentido de ser penalizado e aliviar o pesado resultado, tornando-o mais nivelado.
Não resisto também à referência a um atleta venezuelano, amputado dos braços, medalhado na natação, que utilizando os seus dois antebraços para se locomover na piscina e espantoso, não estava dependente de ninguém. Sentado, como todos, na mesa do restaurante, utilizava os dedos de um dos seus pés, para com a colher ou o garfo, chegar a comida à sua boca, ou para marcar a tecla do computador, na zona da “net”. Gente assim, é fabulosa.
Ficando aqui estes espantosos registos, aproveito para dar um pouco da extraordinária dimensão atlética. Com o correr dos anos, foram ganhando importância social e desportiva e entretanto a China, com o magistral trabalho efectuado, acentuo-lhes o mediatismo e hoje os Jogos Paraolimpicos são um momento indiscutível de grande criação desportiva e imagem. Não vai ser possível ficar indiferente, no tempo, a este movimento que ao se colocar com tal nível de grandeza e qualidade, vai colocar problemas novos, de afirmação desportiva, imagem ou de integro apelo social, tanto aos países que deliberadamente apostam seriamente, pelas mais diversas razões, como por exemplo, e não se pasme, o Brasil, o Irão, ou aqui a nossa vizinha Espanha, ou a países ainda sem esse lastro, como o caso de Portugal. Conseguir guias, por exemplo, para algumas modalidades na área da visão, cegos ou ambliopes, em disciplinas tão rápidas como os 100, 200 ou 400 metros, vai ser tarefa árdua. As marcas que hoje já são realizadas e que tendem a ser ainda mais perfomantes, vão exigir guias de craveira superior, porque não é possível o guia ser mais lento do que o verdadeiro sujeito da história, o atleta paraolímpico. Aliás, nesta matéria, nos Jogos de Pequim, o atleta cego, medalha de ouro nos 100 metros, seria actualmente medalhado no Campeonato Nacional absoluto de Portugal. Em breve isto vai colocar um desafio sério do ponto de vista desportivo. Como resolver?
Outra imagem que retenho, de grande fulgor desportivo, apelo social e mediático, são claramente as disciplinas colectivas, algumas de grande dinâmica, beleza atlética e solidariedade, de que Portugal continua arredado. Refiro-me por exemplo à enorme dinâmica colectiva do voleibol de solo, destinado a paraplégicos, ao basquetebol em cadeira de rodas, a algumas variedades do ciclismo, os barcos colectivos do remo, ou ainda o duro rugby em cadeira de rodas. A presença nestas disciplinas, requer a procura de gente com o mesmo perfil das modalidades olímpicas similares, ou seja gente grande e forte. Neste contexto, será bom sublinhar que esta é uma dimensão que requer grandes investimentos e meios e só os países com apostas declaradas em políticas socialmente fortes, serão capazes de responder. Citei atrás três países, dois deles não seria expectável tamanha vontade, mas a verdade é que devem ter percebido a importância deste movimento, não só por razões mediáticas, mas porque do ponto de vista social estas coisas tem um caminho provado, o da multiplicação, e sociedades relativamente bem organizadas, a este nível, sabem como isto é tão verdade. Acontece que Portugal esteve presente em modalidades individuais, que no futuro lhe trarão necessariamente maiores dificuldades quando se discute a medalha. Isto poderá revelar, tal como nos Jogos Olímpicos, em que não estivemos presentes com nenhuma modalidade colectiva, aliás, a única foi o remo, com um barco de dois, mas isso não chega para iludir a verdade das coisas, que muito está por fazer e por este andar a tarefa se tornará mais complicada. Desse modo, exigir medalhas, como se a coisa se resolvesse, deitando a mão dentro de um caixote, agarrando, levantando e já está, não será possível. Saberemos, porque nem conhecemos os nomes de quem representa o País de 4 em 4 anos? Nesse intervalo só sabemos do Benfica, do Porto, do Sporting, do Ronaldo, do Simão, etc., etc. e porque a dimensão da actividade desportiva, individual ou colectiva, é de tal modo limitada, por razões que cavam fundo na nossa penúria intelectual e consequente militante frustração, exigimos a gente que para além de não sabermos sequer o nome, se classificou com tal esforço, quase no limite, e sabe-se lá como, que só estar é já um notável feito. Um país assim descrito, só pode ter aflições e tristezas. Chamam a isto fado.
Deste ponto de vista, será a Boccia a única modalidade paraolímpica credível para se colocar em fila para as medalhas? Pela lógica social e desportiva do país, provavelmente. Os atletas da Boccia, muito dependentes funcionalmente, vivem muito do seu tempo em instituições e isso garante a oportunidade de poderem praticar com toda a regularidade a modalidade, para além do alto grau de qualificação, feito ao sabor do tempo, e de total entrega dos seus técnicos. Mas estes Jogos também já ajudaram a perceber que nem por aí nos poderemos distrair, porque outros também se posicionam como sérios concorrentes aos lugares da frente. O mesmo se não dirá de outra gente, que faz do trabalho o seu ganha-pão e que na hora das opções, tal como qualquer outro cidadão, escuta antes de mais o apelo do estômago. Cá estaremos durante os próximos 4 anos, para sabermos como será, e se o facto de a alteração estatutária de Federação Portuguesa do Desporto para Deficientes, para Comité Paraolímpico de Portugal, fará diferença. De qualquer modo é importante cuidar de saber, acima de tudo, que estar presente no seio de tamanha família, já de si é de inquestionável valor, retirando desse modo, o peso da exigência da medalha, mas que se contudo ela resultar e se bem publicitada, poderá ter o tal efeito multiplicador e esse é de facto a grande simbiose entre o só estar e o conseguir a excepção. Desenganemo-nos, pois. Pelo caminho que as coisas levam, vai ser preciso fazer muito mais e rápido. Se assim não for, lá vamos cantando, como sempre, o velho fado em dó menor.
Que se fuja ao fado, é uma exigência.
1 comentário:
Muito interessante, muito bem escrito, crónica que merecia divulgação mais ampla. Isto digo eu, que critiquei as "resvaladelas" de ortodoxia comunista do sr. Alberto. Há que saber distinguir as dimensões da escrita.
Enviar um comentário