quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Da Casa Pia com muitos e bons laços

por Augusto Alberto


Em 1957 rumei à Casa Pia de Lisboa e percorri os colégios masculinos fundamentais da Instituição. No ano anterior, um lancinante momento modificou para o mal, que sei eu, a minha vida. Perdi a minha mãe, tinha 7 anos. Confesso que puxada atrás a memória, não consigo descobrir nenhum azedume com esse tempo e essa fatalidade. O pior veio depois, porque houve momentos dolorosíssimos, sobretudo, no início da tomada de consciência e da percepção das coisas. Mas não é desse azedume que aqui quero falar, é de outro, como adiante direi.
Passei então pelos colégios de referência da Instituição e tenho desses anos uma única relação amarga, uma fase de adaptação muito longa, mais de um mês em que estive só, numa enorme enfermaria, sem companhia, mas depois, de seguida, fiz muitos e belos afectos. Na primeira etapa, com passagem pelo colégio Nuno Álvares, em Belém, num amplo palacete de vários andares, com corredores altos, longos e largos, onde o som ecoava esplendidamente, com amplo recreio, onde tudo se passava, as aulas nos edifícios bordejantes ao longo pátio em terra batida, até às enormes salas que nos guardavam do frio, da chuva e do vento, dos banhos memoráveis de água fria, pelas 6.30 horas, para nos tornar mais fortes. Um mundo de histórias que nos floreava a imaginação, porque muitas delas com um estranho e delicioso sentido conspirativo, de ladrões que se atreviam a pular os enormes e robustos muros, que eram afastados ou caçados pelos nossos vigilantes nocturnos, estes os nossos verdadeiros heróis, como é bom de ver. Eu era um menino bem comportado e por isso recebi várias recompensas das nossas preceptoras, que vivam em absoluto ao nosso lado. Só me lembro de lhes sentir alguma folga, quando nas tardes de sábado ou de domingo, quando bem ataviados íamos fazer um longo giro pelos jardins da Praça do Império, frente aos Jerónimos, e elas fugiam fugazmente para ir ao encontro do namorado. Por norma, eram jovens no limite dos 30 anos. Formávamos grupos entre os 30 e 40 alunos, que ocupavam enormes camaratas, com camas de ferro individuais, e eramos vigiados em permanência.

Tornei-me um menino de referência, aluno de nota alta e no limite da idade para permanecer no Nuno Álvares, foram três anos, fui transferido para o colégio dos colégios, o Pina Manique. Foi mais um tempo de profundos laços e emoções, mas não consigo saber porquê, ou sei, o rendimento escolar caiu abruptamente. Depois do melhor, o pior. De qualquer modo, as memórias que guardo são perenes, porque me marcaram muito para o bem, apesar desse entorpecimento. Lembro-me de pintar muito, durante muitos anos gostei imenso. Hoje já não sei? De ter feito duas personagens em duas peças de teatro sequentes. Pelo Natal, a figura do menino. Que belo menino… Pelo Carnaval, fiz de polícia bêbado, figura popular muito causticada, num período de fraco respeito pelas pessoas. E agora que democrático respeito? Era muito comum passar as tardes de domingo, no estádio do Restelo, logo ali por cima. Fica-me na memória, como já aqui referi, um fabuloso Matateu, de seu nome. Passear pelos claustros dos Jerónimos, sair nos Jardins da Praça do Império, e tomar o ar do Tejo, logo ali em frente era,em absoluto, uma tentação.
É importante que diga, para se perceber como o colégio de Pina Manique se tornou o “ómega” dos colégios nacionais, e este é o tal ressentimento de um “ganso”, que todos éramos órfãos e estávamos sujeitos ao absoluto internamento, e nem por momentos saíamos desacompanhados ou estranhos invadiam o espaço que era comum a centenas de jovens, que iam dos 10/11 aos 18 anos. A disciplina, o rigor e a inviolabilidade do espaço, eram certezas adquiridas.
Parece-me, só me parece, que a grande questão que resulta na péssima imagem de um colégio de referência, está exactamente na alteração da circunstância do internato, e na sequente abertura diária a um mundo externo, em desbragada degradação e que teve a oportunidade de calcorrear, abeirar e penetrar dentro de uma instituição que formou gente do melhor que este País já teve. Como “Ganso”, fui-o durante 5 anos, lamento muito que gente menor, tenha aproveitado numa desgraçada oportunidade, deixada ali à mão, por culpa do laxismo de gente que sobre nós trepou, à custa de truques e passes de mágica, para conseguir degradar uma Instituição, que acolhe (u) meninos com vida difícil, e que hoje estão em séria dificuldade em se reequilibrar.
E isto só foi possível porque somos o povo que somos e que, exactamente por isso, temos permitido que gente de calibre voraz e medíocre, tenha conseguido invadir os nossos espaços e vidas. Não sei por quanto tempo ainda mais. É que eles pressentem que em terra de cegos quem em tem um olho é rei, e esta é a questão central.

1 comentário:

Fernando Samuel disse...

Tapar-lhes o «olho real» é o caminha...


Um abraço.