A controvérsia de Saramago com a “Bíblia”, as “religiões” ou o que quer que seja, a propósito de Caim o seu mais recente livro, motivou intervenções diversas, umas interessantes outras nem tanto.
Por mim leitor compulsivo da bíblia, vício que ficou da educação religiosa que recebi, chamar-lhe “manual de maus costumes” é, não uma leitura literal como diz o padre Carreira das Neves, mas sim uma leitura “parcial” no sentido de só encontrar aquilo que se deseja. Mas confesso que o episódio da relação de Deus com Caim e Abel marcou-me, porque tal como em Saramago deixou-me uma marca de descriminação e de injustiça, que se resolve através da queixada de burro. No drama sente-se que a injustiça transformou Caim em assassino. Sente-se a inocência de Abel e a sua transformação em objecto de vingança. Sente-se a ansiedade de Deus ao perguntar “onde está o teu irmão Abel?” E sente-se o arrependimento, e até alguma amarga e velada censura a Deus na resposta “por acaso serei eu o guarda de meu irmão Abel?” Vou ler Caim.
Da Bíblia a Igreja Católica Apostólica Romana seleccionou os conteúdos (entre muitos outros), determinou as interpretações dos conteúdos e conforme as conveniências adaptou-os aos tempos, em resumo fez da Bíblia a História Sagrada, isto é, Deus é simultaneamente o Personagem por excelência mas também o Historiador. Ora a Bíblia é um conjunto de livros escritos em épocas diversas portanto muito heterogéneos na forma e no conteúdo expressando naturalmente as contingências de cada época. É um conjunto de livros escritos por homens e que reflectem naqueles escritos tudo o que é humano. É pois natural encontrar na Bíblia do mais miserável ao mais sublime; “nada do que é humano me é estranho” como dizia Marx nas “Cartas a Kugelman”.
Saramago está a ajustar contas com Deus. Se partirmos do princípio que o homem é criação de Deus este também ajustará contas com Saramago e ficarão “quites”. Mas se partirmos do princípio que Deus é uma criação dos homens Saramago está a esgrimir contra moinhos de vento. E não é que essa esgrima nos tem dado páginas admiráveis?
2 comentários:
Sempre leio o que vai saindo. Sou uma leitora compulsiva de Saramago. Caim estou a começar só hoje...
No global concordo contigo.
Beijinho
Deixando de lado as teologias e correlativas convicções, o debate entre Saramago e o padre Carreira das Neves foi um dos momentos de maior elevação que a TV nos proporcionou nos últimos tempos. Dois opositores que se respeitaram e onde cada um reconheceu as razões do outro. Que diferença das "peixeiradas" a que os nossos políticos nos habituaram!
De facto, gente culta é outra coisa...
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