quarta-feira, 12 de maio de 2010

Os velhos ouvidores

Augusto Alberto


Sempre fomos um país de grupos, a propósito de nada e de tudo. Em 1975, houve um grupo que ficou famoso. O grupo dos nove, que para o bem e para o mal, nos deixou traçado o futuro. Como não há um sem dois e dois sem três, dia 10 de Maio, um outro grupo, de 10, deslocou-se a Belém para ir às falas com o mordomo. Para dizer aquilo que já sabíamos. Que sim senhor, a festa deve continuar mas o progresso da pátria deverá esperar, porque a farra deverá continuar a ser só para alguns. Eu sempre andei desconfiado de que isto não é coisa nova e vai dai fui à estante e puxei pelos livros do padre António Vieira. Para melhor nos situar, digo que viveu entre 1608 e 1697. Uma vida longa, mas muito, muito penosa.
O Padre António Vieira sempre acreditou no serviço à pátria e sempre lhe desejou o progresso e, nesse sentido, teimou com o seu rei para que permitisse o regresso ao país dos cristãos-novos, judeus residentes na Holanda, afim de cá aplicarem as suas fortunas no progresso da pátria bem amada, que evidenciava, então, razoável decadência. Será escusado dizer que o rei amochou e evidentemente os oficiais do santo oficio, guardas avançados dos bons costumes, da nação e das suas misérias, trataram de fazer a vida negra não só aos cristãos-novos, como é sabido, mas também ao Padre, que por pouco não foi frito, em lume brando na panela carregada de azeite.
A propósito desta sua insistência no amor à pátria e em defesa dos cristãos-novos, é meu desejo deixar neste singelo texto, um seu desabafo, que dá bem a dimensão das coisas e que desagradou profundamente aos zelosos dos bons e pobres costumes: "quando queimarem um judeu inocente, inocentemente acusado de ter assado o carneiro pascal, não faltou quem confessasse tê-lo visto levar o carneiro na algibeira, assa-lo ao lume da candeia e depois engolir o candeeiro".
Estamos perante, não só, uma mordaz observação, mas também na leitura muito real do país paupérrimo. Poderemos dizer que muito mudou, mas suspeito que não será tanto assim, pelo que as dúvidas me continuam a assaltar e talvez por isso, tenha sido sempre um pouco desalinhado. Fazendo minhas as palavras do padre Vieira, quase que me atrevo a dizer, que será bom estarmos atentos porque de um dia para o outro, quem sabe, virá por ai outro nobre português, que dirá: "quando acusaram aquele cidadão inocente, acusado de ter defendido o progresso, não faltou quem contasse tê-lo visto levar os planos do tgv na algibeira, consultá-los à luz do candeeiro e depois tê-lo visto engolir as carruagens".
Parece esta singela crónica primar pelo absurdo, também o dito do padre Vieira, como vimos, mas como estas coisas estão, é melhor estarmos atentos, porque ao contrário do que pensamos, continuam por ai velhos ouvidores e queixinhas, na pugna de velhos costumes e velha pobreza. Ainda que para já, o azeite não ferva nas celhas da inquisição.
Ámen.

2 comentários:

Guimaraes disse...

Pois é! Para os defensores dos "bons costumes" devemos manter o velho comboio de bitola ibérica, se possível a lenha, afirmando-nos "orgulhosamente sós". As exportações podem ir para a Europa de burro.

Ana Tapadas disse...

Como calculas aprecio o Padre Vieira. Passei mesmo a ter que usar óculos depois de me ter consumido a ler microfilmes dos seus Cadernos...e não me arrependo.
Logo, bem me entendes!
Bj