quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Da vergonha...


"Em Miragaia, no Porto, eram oito os filhos no casebre pobre. E mal Albertina Dias nasceu, o pai morreu...
- Passei mal. Até para comer. tive de começar a trabalhar pequenina, deixar de estudar cedo, apesar de ser boa aluna. Num escritório de despachantes, nas limpezas. Depois num armazém, a carrejona: levava sacos de figos à cabeça onde fosse preciso. Um horror, sobretudo a galgar as ruelas íngremes da Sé.
O atletismo afastou-a da miséria. Em 1990, sagrou-se vice-campeã mundial de corta-mato, dois anos depois juntou bronze à prata, em 1993 fez o que nunca nenhuma portuguesa fizera, nunca mais nenhuma faria: campeã do mundo.
Casou-se com Bernardino Pereira, seu treinador. Teve uma filha. Em 2003, o destino deu-lhe, cruel, de novo, volta à vida: ele morreu de cancro. Ela tinha 37 anos, atrevera-se a treinadora, fizera de Ercília Machado campeã nacional...
- Pedinchei ajuda, nada. Até que Rosa Mota e Pompílio Ferreira conseguirem que me dessem lugar de animadora desportiva na Gaianima. A 400 euros por mês. Era pouco, trabalhava a dias ainda...
No fim do ano, a Gaianima prescindiu dela. Pôs à venda a casa onde vive
- Não quero que a minha filha passe o que eu passei...
e decidiu leiloar as três medalhas dos CM na Net, com licitação a 70 mil euros...
- Custa muito. É pedaço de mim que... que... como um rim... Mas não posso comer as medalhas... Ando a fazer limpezas em duas casas, a cinco euros à hora...
Uma vez que em 2010 a direcção-geral de Contribuições e Impostos gastou 30 mil euros só em medalhas comemorativas do seu 160º aniversário e o Banco de Portugal 190 mil em moedas e afins - será que não há por aí organismo do Estado que compre as da Albertina e as vá depositar no Museu do Desporto?
Era a forma de a compensarem pelo modo como a foram tratando neste país que cada vez mais regressa pior ao país do Cesariny: onde os homens são só até ao joelho e à noite nos rondam os dias em ruas cheias de cadillacs obscenos que na sua metáfora são a nossa vergonha.
(Pois, parece-me que estou a ouvir um murmúrio a dizer-me para ter juizinho...)


António Simões (in jornal "A Bola", em 2011-02-22)

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