Numa fatídica volta ao Algarve em bicicleta, Joaquim Agostinho, atleta dos nossos contentamentos, atropelou um cão vadio, caiu e bateu com a cabeça no chão e apesar de muito combalido, ainda arranjou forças para acabar a etapa e depois de a ter acabado, acabar no hospital, acabando por entrar em coma violento e acabar morrendo para nosso desconsolo. E eu por esses tempos, claramente muito mais novo, correr diariamente 30 km, era coisa consensual e sem leve esforço. Levíssimo este rapaz. Um dia numa dessas corridas pela lindíssima Serra da Boa Viagem, porque foi antes do arrasador fogo de 1993, decidi mudar de rumo, alterar o trilho e experimentar passar por lugar diferente e inabitual. Meti por vereda abaixo, com o plano oceano, a lindíssima enseada de Buarcos e a cidade, sempre em frente aos meus olhos. E eis que num dado momento sou obrigado a estancar porque ao caminho me saíram dois corpulentos cães doberman. Claramente assustado, parei sorrateiramente em frente ao portão do quintal da habitação que os cães guardavam. Sem me mexer e rezando à minha sorte para que os bichos não perdessem a tramóia e compostura, fiquei sossegadinho, sem um movimento, para além do acto autónomo da respiração. Os cães devem ter percebido que afinal eu não era ladrão, atenciosos, ficaram sentados sobre as patas traseiras com os olhares ferrados em mim. Passados curtos minutos, mas longos para o efeito da libertação, decidi arriscar sair dali e comecei pé ante pé a recuar calmamente, até atingir a estrada principal, de que nunca me deveria ter apartado. Os cães sempre vigilantes, educados ou com pena, sem esboçar qualquer intenção violenta, quando chegados à estrada, despediram-se e eu respirei fundo e retomei o que faltava para acabar os 30 km da corrida diária, em paz e sem mais contratempos. Estes cães não eram vadios, estavam superiormente educados, fizeram o seu trabalho de modo enxuto e para meu consolo, sem pinga de sangue, o que a verificar-se, ter-me-ia sido fatal. Foi o meu maior susto em dezenas de anos, muitos, de corridas, ainda que por ora esteja a ser vítima de outras sociais ferradelas.
Nos dias de hoje, vá-se lá saber, a cidade e as freguesias que eu percorro a pé ou bicicleta, porque o automóvel é bicho que me não assenta, está infestada de cães abandonados e por isso vadios. Alguns bem tratados, ainda com coleira nova, a dizerem-nos que os donos se fartaram. Talvez porque o dinheiro já não chega para as sopas da família, que fará para a ração do cão e então, rua. Talvez porque o estado de ética e empenho moral das pessoas esteja a ser levado, como o mar cão, em dia de temporal, leva a areia da praia. Não sei…O que sei é que esta pátria está a ficar exaurida e por essa causa, a perda de referências sociais são também uma evidência, e por estas razões os cães também são obrigados a pagar a crise, tal qual os humanos donos. Mas tenhamos calma, porque neste entretanto, nem todos somos iguais, tal como os cães, cirandam para aí uns que são mais, muito mais cães do que outros. Há uns cães que se enroscam em tapetes, alguns persas, será? Outros que repousam o focinho em fofas almofadas, outros ainda rosnam de sono em sofás espampanantes. Outros, que sabemos nós, outras riquezas têm como por exemplo, cobram a sede bebendo champanhe em finas taças. São os que eu chamo de cães “pavlovianos”, porque salivam mesmo de pança cheia.
Mas os rafeiros e os abandonados, sofrem, porque primeiro sofrem os donos, que socialmente abandonados, correm com os cães para as estradas e veredas deste país. E eu, apesar de cidadão respeitoso e de ter levado um susto há mais de vinte anos, de volta e meia, ainda hoje, levo com cães às canelas e por isso ainda me assusto. Não sei que mal eu fiz, porque o raio dos cães não me largam. E a vós? Será que a sorte é a mesma? Será que a sorte que acompanhou Joaquim Agostinho naquela fatídica volta ao Algarve em bicicleta, acaba por ser a sorte que nos está permanentemente a acompanhar? A ser verdade, então deixai que vos diga que vai sendo tempo de ir à procura de outras sortes.