Augusto Alberto
Vidas simples. Visitam a farmácia como qualquer anónimo
cidadão. Um xarope para a tosse, uns rebuçadinhos para a garganta. Gostam da
senhora doutora. Uma mulher de meia-idade, um pouco abrasiva talvez, que
gostava de dizer que este era o país, por poucas razões, das manifestações. Mas
agora a senhora doutora colocou uma faixa preta a decretar o luto na sua
farmácia e por força esteve na manifestação da sua classe, em Lisboa, porque a
farmácia corre o risco de fechar.
Luís e Alexandra, com regularidade, ao domingo como o comum
dos casais, combinavam um almoço no restaurante do bairro. Conversavam bastante
com o dono. Um homem decidido e que também achava, tal como a senhora doutora
da farmácia, que este país se perdia em manifestações. Por sorte, numa tarde
molhada e desagradável, de regresso à ponte, conseguiram ver na tv a
manifestação dos senhores da restauração, e por ironia, o senhor do restaurante
estava lá e, pelos vistos, também molhou a sopa no automóvel do deputado da
maioria, Duarte Pacheco.
Luís e Alexandra, talvez tenham sido tocados pelas opiniões
da senhora doutora da farmácia e do senhor do restaurante e por isso, por ora,
para além de dormirem debaixo da ponte, estão muito confusos. De todo o modo,
tal como Luís e Alexandra, também a senhora doutora da farmácia e o senhor do
restaurante, estão impiedosamente acossados, e por isso sentiram necessidade de
pisarem as mesmas ruas que o pessoal do barro, da malha e do ferro. Que ironia!
Podem acreditar que melhores dias virão, evidentemente,
porque o capitalismo, malgrado sofrer de doença estrutural e endémica, vai
continuar a lançar cânticos de sucesso.
Contudo, saibam que os gadgets de última linha e os
carrinhos de gama média, são só para alguns. Não duvidem, este país vai
continuar a ser uma colossal misericórdia, instituição, aliás, onde Luís e
Alexandra, vão em breve, buscar o prato com batatas e bacalhau mais duas
rabanadas, para o aconchego da noite da consoada. Reposição das sopas dos
pobres, da filosofia caritativa do tempo fascista, tão ao gosto do ministro
Mota Soares, em quem o senhor do restaurante mais a doutora da farmácia, por
ventura, votaram.